“Dois terços das vacinas foram destinadas aos 50 países mais poderosos, e 0,1% aos 50 países mais pobres”, adverte Diego Tipping, presidente da Cruz Vermelha Argentina. O México levou a demanda por maior equidade na distribuição ao Conselho de Segurança da ONU. E somou o apoio da Argentina, país com o qual se comprometeu a fabricar 250 milhões de doses até julho em parceria com a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca. A produção, no entanto, está atrasada por falta de embalagens. Ante a emergência, aumentou o “salve-se quem puder”, como também pode acontecer na Europa.
O resultado é que a cifra total de doses pode ser enganosa quanto à capacidade da América Latina e do Caribe de atender às suas populações, pois 87% das doses estão nas mãos de apenas quatro países: Brasil (15 milhões), Chile (8,6 milhões), México e Argentina (4 milhões). Os quatro integram o grupo das cinco maiores economias da região, com a única ausência da Colômbia. Já países como Cuba (que prepara sua própria fórmula) e Honduras não receberam nem uma dose sequer. Outros, como Paraguai (4.000), Equador (73.000) e El Salvador (20.000) contam com apenas alguns milhares. As diferenças entre ricos e pobres são evidentes.
A pressão interna sofrida pelos Governos para superar os vizinhos, somada à restrição atual do lado da oferta, transformou numa miragem a ideia da distribuição baseada na solidariedade entre os países. E o modelo de compras fez o resto. Com base na lógica do livre mercado, não numa estratégia sanitária global, os países com fluidos vínculos comerciais têm tido mais sucesso que os demais. O Chile é o melhor exemplo disso: 30 tratados comerciais em vigor e uma madura cultura de negociação permitiram que o país andino selasse contratos de 60 milhões de doses em três anos, das quais já recebeu quase 9 milhões para distribuir entre 16 milhões de habitantes. “As discussões internas sobre a vacina concentram-se no âmbito local, em comparar como estamos em relação ao vizinho. E devemos entender que o acesso à vacina não é só uma questão humanitária; relaciona-se também com uma estratégia bem-sucedida contra a pandemia. De nada adianta alguns países vacinarem a totalidade de sua população se outros não puderam começar, pois o vírus continuará circulando”, diz Tipping.
A maioria dos países da América Latina e do Caribe hoje depende do Covax, o mecanismo conjunto da OMS e da Aliança Global para Vacinas e Imunização (GAVI) para distribuir de forma equitativa 281 milhões de doses. As primeiras 117.000 chegaram na segunda-feira passada à Colômbia, país que, como tantos outros, ficou de fora da primeira rodada de entregas por parte dos laboratórios privados. O vazio abriu caminho para que a Rússia e a China introduzissem suas próprias vacinas na região.
Enquanto a farmacêutica americana Pfizer cumpriu 1,6% de seus contratos com a região e a britânica AstraZeneca somente 0,26%, as entregas da vacina russa Sputnik V e da empresa chinesa Sinopharm giram em torno de 5% do que foi acordado. “Laboratórios como Pfizer e AstraZeneca tinham também grandes compromissos na Europa e nos EUA, mas as vacinas russa e chinesa não tinham esses compromissos. Os países latino-americanos que compraram da Rússia ou da China receberam vacinas primeiro, pois é mais fácil estar na frente na lista desses laboratórios que na dos que têm compromissos com os EUA e a Europa”, explica o colombiano Johnattan García Ruiz, pesquisador do think tank Dejusticia e professor de Direito e Saúde Global da Universidade de Los Andes. “Uma coisa é fechar a negociação. Outra é que o laboratório cumpra com as entregas.”
Todos os presidentes têm uma responsabilidade inédita, que é pensar uma estratégia global contra a pandemia sem que os países olhem para si mesmos e se comparem com o do ladoDiego Tipping, presidente da Cruz Vermelha Argentina
O Brasil é um bom exemplo dos problemas relacionados com os envios. A maior economia da região reservou 415 milhões de doses (mais da metade delas da AstraZeneca), mas só recebeu 15 milhões para uma população de 210 milhões de pessoas. “O Brasil não comprou a tempo a quantidade adequada” diz Marcio Sommer Bittencourt, médico e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). Bittencourt atribui a demora à imperícia do Governo de Jair Bolsonaro, que “não aceitou a oferta das empresas feitas antes da finalização dos estudos clínicos, criou obstáculos jurídicos, não facilitou a aquisição de vacinas por parte dos Estados e não buscou alianças.”
À primeira vista, o Brasil reservou mais vacinas do que necessita, mas até agora só conseguiu vacinar cerca de 4% da população, e isso considerando o total de pessoas que recebeu somente uma das duas doses dos imunizantes. “Obviamente, é mais difícil para um país pobre comprar vacinas, mas o Brasil é um país intermediário, como Chile, Marrocos e Turquia, que estão na frente na vacinação”, afirma. Assim como Argentina e México, o Brasil apostou na produção local de vacinas em parceria com laboratórios internacionais, com o Instituto Butantan (Coronavac) e a Fiocruz (em parceria com a AstraZeneca e a Oxford) na linha de frente. Mas o pesquisador da USP lamenta que o país não esteja desenvolvendo sua própria vacina contra a covid-19, embora tenha a tecnologia necessária. Gonzalo Vecina, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), lembra que o Brasil “exporta a vacina contra a febre amarela”, por exemplo.
Em 23 de dezembro passado, o México foi o primeiro país latino-americano a receber a vacina contra a covid-19. E, assim como o Brasil, está muito atrasado por problemas de escassez. O Governo de Andrés Manuel López Obrador fechou a compra de mais de 234 milhões de doses de cinco imunizantes diferentes, mas recebeu apenas 1,7% “O México fez o que pôde”, diz Mauricio Meschoulam, professor da Universidade Iberoamericana. Meschoulam explica que a margem de ação é muito reduzida para os países de renda média e baixa, porque o fator determinante nas negociações com as farmacêuticas é o financiamento para o desenvolvimento de suas vacinas. Desse modo, os países ricos pediram mais vacinas do que necessitam, e os laboratórios ofereceram mais do que podem produzir, deixando as demais nações no limbo.
“Estamos diante de uma desigualdade brutal na distribuição de vacinas no mundo”, diz Meschoulam. Uma realidade que serviu para que os governos justificassem as demoras nas campanhas locais. O protesto mexicano na ONU vai nesse sentido. “O Governo tenta explicar que ‘estamos lentos na vacinação e gostaríamos de ter mais vacinas, mas veja o que está acontecendo no contexto internacional’”, afirma Meschoulam. Os problemas se agravam à medida que diminui o poder de compra nacional ou que a situação política se torna mais frágil. É o caso do Peru, nas mãos de um Governo de transição após a saída antecipada do presidente Martín Vizcarra pela via parlamentar.
O Peru recebeu em fevereiro um milhão de frascos da chinesa Sinopharm, uma compra que foi manchada pelo chamado vacunagate, escândalo que envolve mais de 450 pessoas que se imunizaram irregularmente entre setembro e janeiro com doses que a empresa ofereceu ao Governo peruano em agosto. O diretor do Centro Bartolomé de las Casas de Cusco, Carlos Herz, chama a atenção para esses problemas adicionais, frutos da “frágil institucionalidade do Estado e da pouca capacidade de gestão”. “O ineficiente aparato público faz com que tenhamos essa quantidade de vacinas, mas os interesses políticos particulares agregam um fator de demora. Isso vai de encontro à capacidade de relacionamento para comprar”, diz Herz.
Os países da América Latina e do Caribe, sem exceção, devem resolver o quanto antes o gargalo existente na cadeia produtiva. Têm pouco ou nulo poder de fogo contra as maiores economias. Tipping, da Cruz Vermelha Argentina, diz que a situação é muito grave, mas que também há uma oportunidade. “Todos os presidentes têm uma responsabilidade inédita, que é pensar uma estratégia global contra a pandemia sem que os países olhem para si mesmos e se comparem com o do lado”, afirma.
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