sábado, 6 de março de 2021

Apartheid social da lógica do condomínio põe em risco a República

Que o Brasil é um país desigual em que algumas pessoas parecem valer mais do que as outras já é dado concreto, mas o professor e pesquisador Roberto Andrés diz que é preciso nomear esse fenômeno que, para ele, é um apartheid social. “Como relatou Denis Burgierman em um artigo recente, precisamos nomear esse apartheid social para começarmos a encarar a gravidade do nosso problema”, completa, em entrevista concedida via mensagens de áudio pelo WhatsApp para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Ele ainda lembra Milton Santos, com a ideia de que a cidadania brasileira é marcada por uma segregação, em que de fato ninguém é cidadão. “A classe média e as elites não são cidadãos porque não querem ser, preferem buscar privilégios. Enquanto a maioria da população, especialmente a população negra, não tem direito de ser cidadão”, explica.

Andrés chega a tais elaborações a partir da reflexão sobre a separação que se dá nos espaços urbanos. Segundo ele, as próprias cidades foram se forjando com essas desigualdades e separações. Mas o mais impressionante é que isso leva aos condomínios fechados e suas lógicas paralelas. “Esse tipo de conformação urbana, em que uma parte da sociedade se isola da esfera pública e busca resolver seus problemas de uma forma privada, é um grande degradador da vida democrática e da possibilidade de uma vida compartilhada nas cidades”, observa. E essa realidade paralela não só separa as pessoas e fragmenta a cidade, como cria as chamadas ilhas de privilégios enquanto o resto rui. “Os condomínios e os shoppings centers, por exemplo, dão concretude territorial e material às ilhas de privilégio legal estruturadas no coração da nossa sociedade em que a parcela rica sempre teve acesso a diversos elementos da cidadania”, detalha.

Jair Bolsonaro sempre se viu como uma pessoa, dotada de privilégios à margem da lei, e a lógica do condomínio enfatiza essa dinâmica.

O problema, segundo o professor, é que esses empreendimentos e suas lógicas têm um boom justamente no momento em que o Brasil saía de um processo de repressão cívico-militar. “O esforço de retomada da democracia política acabou sendo esvaziado, erodido por essa ‘desdemocratização’, esse acirramento da segregação do espaço público”, completa. E o caldo vem entornado até esse grupo social que gosta de garantir os seus privilégios encontrar eco numa figura como o atual presidente da República. “Toda lógica de atuação de Jair Bolsonaro é a lógica de um morador de condomínio. Ele não enxerga a República, o espaço universal, só enxerga a facção e o espaço particular como beneficiários de sua atuação”, analisa.

O resultado é devastador, pois temos um processo de democratização interrompido pela segregação de pessoas e espaços públicos que, agora, ignoram os rompantes e devaneios do presidente pelo simples fato de que, apesar de tudo, suas benesses estão garantidas. “Jair Bolsonaro sempre se viu como uma pessoa, dotada de privilégios à margem da lei, e a lógica do condomínio enfatiza essa dinâmica. E os indivíduos, aqueles que estão sujeitos a desvantagens da lei, ficam do lado de fora”, resume.

Para Andrés, estar atento a esse processo é necessário para que possamos pensar em como reconstruir a cidade, o espaço público, o bem comum e livrar a República, no seu sentido pleno, dessas ameaças que conformam o próprio espírito cívico brasileiro. “Sinto que a sociedade brasileira, mesmo sem motivos para otimismo, precisa superar essa ideia de estarmos entre sermos o pior do mundo ou os melhores do mundo e começar a olhar com mais nuances e matizes os nossos problemas e potencialidades”, finaliza.

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