Há valores que são universais e a eles é que devemos deferência e não à cada vez mais enganosa fronteira entre direita e esquerda. O esforço é para manter conquistas, que dávamos como garantidas, como a autonomia da mulher, o respeito à orientação sexual, o combate ao racismo, a proteção do meio ambiente, a defesa dos povos indígenas. Por sobre esse pacto básico civilizatório, podem ser explicitadas diferenças sobre questões em que grupos políticos tenham visões diferentes. O problema no Brasil atual é que a clivagem começa a ser sobre os valores universais.
Entregar a demarcação de terras indígenas ao Ministério da Agricultura é acirrar um conflito de terras, fortalecendo o lado mais forte. Entre os próprios produtores há os que discordam da mudança. O avanço sobre terras indígenas se dá através de grileiros que invadem, derrubam, colocam gado, vendem a terra e o comprador a passa adiante. Em determinado momento, o suposto proprietário da terra pública dirá que aquela área estava já consolidada quando a comprou e que o erro está no limite da demarcação. E de pedaço em pedaço vão sendo reduzidos os territórios protegidos, seja terra indígena, seja outro tipo de área de conservação. O Estado só pode entrar aí se for com o olhar mais neutro possível. Não pode armar e fortalecer o grupo agressor. Quem conhece o agronegócio sabe que nenhuma generalização é possível, porque os que realmente estão produzindo e exportando entendem que esse e outros sinais dados atualmente no Brasil, de desprezo aos direitos humanos e à biodiversidade, colocam seus negócios em risco.
A defesa dos direitos da mulher está exatamente nessa clivagem entre inteligência e estupidez, entre civilização e barbárie. Desde a primeira onda feminista, as sufragistas no começo do século XX, até a quarta onda comandada pelas jovens mulheres de hoje, o mundo vem avançando neste tema espinhoso, como me explicou em entrevista esta semana a escritora Heloisa Buarque de Hollanda. No Brasil atual, o poder retrocedeu ao ponto em que uma ministra defende a “submissão da mulher” com argumentos religiosos, e os diplomatas brasileiros se recusam a apoiar um documento da ONU porque em determinado trecho ele defende o direito à “saúde reprodutiva da mulher”. Esse retrocesso fundamentalista no Brasil é a estupidez. A inteligência está do lado em que sempre esteve: em considerar que é preciso continuar a longa luta por igualdade entre homens e mulheres em todas as áreas, seja no mercado de trabalho, seja dentro das famílias. A igualdade sempre será um norte civilizatório. A defesa de uma hierarquia entre pessoas, determinada pelo gênero, é a barbárie da qual temos nos distanciado ao longo de toda a luta feminista.
O Supremo acaba de dar um passo civilizatório ao criminalizar a homofobia. Algumas vozes se levantaram contra isso com ideias esdrúxulas de que isso ameaça a liberdade religiosa ou que vai ser prejudicial aos próprios homoafetivos no mercado de trabalho. De novo aqui se aplica a definição de Agualusa. Não é o conflito entre direita e esquerda que se coloca nesta questão. É simplesmente estúpido e bárbaro aceitar o ódio contra pessoas por não serem heterossexuais.
Heloisa Starling trouxe para Araxá um ônibus que abre e se transforma num centro de exposição com a mostra “Conflitos”. Nos primeiros dois dias, mil e duzentas crianças e adolescentes já haviam ido para ver a coleção de fotos e filmes que exibe a violência de alguns conflitos brasileiros, como Canudos ou a Guerra do Contestado. Esse é o momento de entender o que nos une, nos separa, nos identifica e nos trouxe até aqui. Antes que nos acostumemos à banalidade do mal.
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