No discurso de posse do novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, a palavra mais usada foi Deus, fazendo honra ao seu lema de campanha, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Dá a impressão de que o Brasil deseja ser governado sob o amparo divino, mais do que sob as leis e a Constituição.
E não só o presidente, mas também seu recém-estreado ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou que Deus estará “na diplomacia, na política, em todas as partes”. E chegou a individualizar essa presença forte de Deus em dois personagens emblemáticos do mundo atual: os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e do Brasil, Bolsonaro. São eles dois que, segundo o diplomata, devolverão a Deus a uma civilização que o tinha perdido.
Trata-se, entretanto, de um Deus ambíguo e politicamente incorreto, já que apresentado como representante da civilização cristão-judaica. Não é o Deus que deve libertar os escravos da pobreza e da injustiça, o Deus dos que sofrem por serem diferentes, o dos excluídos dos privilégios, e sim o que adoram os satisfeitos, o vingador mais que o pacificador. O Deus da violência mais que o desarmado das bem-aventuranças.
Um Deus que infunde medo nos que deveria acolher sob sua proteção. É um Deus que se faz ouvir só através das ordens, gritos e armas do poder, não o que fala no silêncio dos corações em busca de paz e de diálogo.
Basta, entretanto, observarmos os países que colocaram Deus “acima de tudo e de todos”, e seus resultados. Costumam ser não só os mais autoritários e atrasados, mas também aqueles onde os pobres e as minorias sofrem com mais força a injustiça e a violência. O Brasil, é verdade, sempre foi um país, como quase toda a América Latina, com uma forte presença religiosa nas massas populares. Tratava-se, entretanto, mais de uma postura pessoal, como refúgio contra a dor e as dificuldades da vida. Agora, no Brasil, estamos numa fase nova e mais perigosa. A bandeira de Deus é hasteada por um presidente que parece querer governar em seu nome.
A ideia de Deus – que deveria ser conjugada, no máximo, com os movimentos de liberação dos oprimidos e marginalizados – começa a se tornar, como nas piores teocracias, um curinga para encobrir políticas de obscurantismo. O Brasil passou da teologia da libertação de raiz católica, baseada na mensagem marxista da luta contra a injustiça, à conservadora “teologia da prosperidade” dos evangélicos, que promete novas utopias que adormecem as injustiças.
O novo Governo de Jair Bolsonaro, o presidente apaixonado em igual medida por Deus e pelas armas, vai necessitar de uma oposição para que a obsessão do “Deus acima de todos” não se transforme numa perigosa idolatria. Nada mais explosivo para a democracia que uma presença obsessiva da sombra de Deus por parte dos que governam um país laico por constituição.
Alguém terá de explicar aos evangélicos de boa fé, que são a grande maioria, e também os mais castigados pelas injustiças sociais, que Deus, mais que uma bandeira nas mãos de conservadores e políticos que o anulam como propriedade, deveria ser uma força de resistência contra as desigualdades sociais e as intolerâncias. A excessiva presença de Deus na política acaba sempre se tornando um oculto e cruel inimigo dos que sempre pagam o preço da opressão. Os piores ditadores, de qualquer cor política, acabaram convertidos em grandes apaixonados por Deus.
Nada pior para as massas mais desamparadas, sobre as quais recai sempre o peso da violência econômica e social, que um Deus ambíguo, transformado em arma para castigar, mais que na alvorada de uma ressurreição de seus sonhos. Nada menos cristão que frustrar, em nome de Deus, os sonhos dos que mais sofrem. Nada pior que tentar governar pelas mãos de Deus. Nada mais perigoso que o Deus que teme a discussão das ideias e a pluralidade dos desejos.
Não acredito que o sonho dos brasileiros, até dos mais pobres, seja o Deus militarizado que impõe uma obediência cega. Eu os vejo mais como seguidores do Deus dos limpos de coração, como aqueles que, mais que a justiça divina, temeram sempre a violência arbitrária dos que os escravizam. Sempre em nome desse Deus, curinga para justificar todas as opressões. O Deus dos escravos nunca será o Deus com o qual o poder mercadeja.
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