E a subversão, como estamos finalmente percebendo, sem as lentes do nosso autoritarismo, que é parte do poder à brasileira. Naquela época, entretanto, poucos ousavam resistir. E foi nesse clima que surgiu o operário do ABC. O metalúrgico não modulado intelectual ou ideologicamente, mas ousado o suficiente para enfrentar o regime militar. É lamentável que tal personagem tenha sido enredado por si mesmo e pela índole equivocada do seu partido, a ponto de hoje ser o inverso do que prometia sua luminosa trajetória política.
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Mesmo vivendo num imenso território falamos, lemos e escrevemos numa única língua. Mas usamos idiomas ambíguos no nosso modo de navegação social. Fomos monarquistas-escravocatas e hoje somos republicanos alérgicos à igualdade. A regulagem impessoal de uma fila — que requer espera, como digo no livro “Fila & democracia”, escrito com Alberto Junqueira — enerva e irrita, mostrando como a cidadania ainda é concebida pelo modelo dos patrões-barões.
O sistema é democrático, mas se a liberdade é idolatrada, pois ela se confunde com o direito à reclamação e ao confronto; a igualdade — que obriga a contenção justamente pela consciência da igualdade do outro — é vivida com ambiguidades. Para muitos, o reconhecimento do outro é um sinal de inferioridade. Poucos o tomam como um sinal de respeito pelo próximo como um igual, embora eventualmente divergente. Hoje vemos com consternação a “esquerda” reagir negativamente diante de um princípio que ela própria adotou.
Eu cito um jornal, mas você (esquerdista) diz com desprezo: “Esse eu não leio!” Você transforma a notícia em interpretação e, quando lhe interessa, faz o oposto, fazendo a interpretação virar o fato. Essa é a postura que nega a alternativa e a alteridade. Estamos no reino do tudo ou nada. Um espaço no qual fica em suspenso a atribuição de responsabilidade individual. A culpa é — como diz um raivoso Lula prestes a se entregar — sempre do outro.
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Esquecemos que a igualdade e a liberdade trabalham. De fato, os cargos que ocupamos também nos ocupam e modelam. Ou deveriam modelar — e se nos modelam para o mal, devem ser politizados. Ou seja: discutidos com bom senso e boa-fé. Honestamente.
Se como porteiro ou lixeiro eu, como professor, sou obrigado a fazer certas coisas, imagine as demandas do papel de presidente da República. Como é que um presidente que prometeu não errar no sentido de mudar o Brasil envolveu-se a ponto de ser condenado criminalmente? Acho isso mais do que vergonhoso: é desolador.
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Discutimos tudo, menos os conflitos entre papéis sociais. Pode um juiz julgar um caso no qual um parente está evolvido? Quais os limites dos favores que um administrador público pode se permitir? Pode um cargo público ser concedido apenas por amizade ou motivação política? Passando por cima dos conflitos de interesse, liquida-se o principio da igualdade, da competência, da competição, da eficácia e do mérito. O resultado é a contradição e a crise porque o papel —como a língua, a ideologia, a roupa, o dinheiro, o amor, a farda, a beca, a comida, o vinho e tudo o mais — cobra e exige a sua parte. Tornam-se mais ou menos presentes nas nossas vidas. E quando surgem a olho nu diante do ator, há a crise.
Como disse Marx, ou é a farsa ou tragédia.
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O que vimos não foi o combate do poder do eleito pelo povo contra uma Justiça golpista. Foi a tentativa evasão do poder da Justiça pela truculência.
Felizmente não deu certo. No fundo, reitero, testemunhamos mais um ato reacionário de resistência à igualdade como valor. Um ato melancolicamente realizado por um ex-presidente criminalmente condenado e por partidos políticos autoritários. A rendição de Lula, enfim, foi um funeral para quem ainda acredita no socialismo.
Roberto DaMatta
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