O projeto injetou 11 artigos novos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de setembro de 1942. Alegou-se que o objetivo das mudanças seria o de aprimorar as decisões dos gestores públicos e disciplinar a atuação de quem tem a incumbência de fiscalizá-los e julgá-los. No final, haveria mais segurança jurídica e menos imprevisibilidade. Entretanto, aos olhos das autoridades que lidam com o combate à improbidade, a nova lei servirá como “reduto para a impunidade” do administrador corrupto (pode me chamar de apadrinhado de político).
Uma das novidades previstas no projeto é que procuradores, magistrados e auditores, ao interpretar “normas sobre a gestão pública”, terão de levar em conta “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor”, além de observar “as exigências das políticas públicas a seu cargo”. Na carta a Temer, os críticos do projeto indagaram: “Que dificuldades reais seriam essas?”
Para juízes, procuradores e auditores, criou-se “uma modalidade de interpretação casuística, arbitrária.” Avaliam que o novo dispositivo legitima a lógica segundo a qual “os fins justificam os meios”. Algo “incompatível com a administração pública.” O efeito prático da análise de “obstáculos e dificuldades”, acrescentaram os autores da carta, é a formação de “campos de impunidade para o gestor ou administrador”.
Noutro trecho, a proposta submetida à sanção de Temer prevê que, antes de questionar a validade de atos e contratos firmados por gestores públicos, os órgãos de controle e o Judiciário terão de levar em conta “as orientações gerais da época”. O projeto proíbe que se utilize uma “mudança posterior de orientação geral” para declarar “inválidas situações plenamente constituídas”.
O projeto traz uma definição de “orientações gerais”. São “interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.”
No ofício a Temer, os servidores que têm a atribuição funcional de conter a atuação de larápios no serviço público escreveram que as tais “orientações gerais” constituem uma “categoria tão aberta quanto a leitura textual sugere, isso porque fala em ‘atos públicos de caráter geral’. O que seriam ‘atos públicos de caráter geral’?”
Diz a carta a certa altura: “O aspecto central de maior preocupação reside no fato de que se criam modalidades e justificativas abertas para eventual convalidação de atos ou de contratos inexistentes ou nulos.” Isso “fere os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”
Em conversa com o blog, um ministro do Superior Tribunal de Justiça tachou o projeto de “absurdo”. Ao comentar o trecho que legaliza “prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público”, o magistrado declarou: “Suponha uma cidade qualquer em que o prefeito não faça contratos administrativos, mas acertos de boca. Todo mundo conhece a prática na cidade. O prefeito anterior fazia a mesma coisa. Ninguém poderá puni-lo, porque será uma prática administrativa reiterada, de amplo conhecimento público.”
Se for sancionada por Temer, a nova lei criará um “regime de transição” para que administradores se adaptem a decisões administrativas ou judiciais que estabeleçam “interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito.” Trata-se de outra anomalia, alertaram os críticos no documento protocolado no Planalto:
“No que diz respeito especificamente à decisão judicial, ela não impõe ‘novo’ dever”, anota o ofício. “O dever é anterior à decisão judicial, por isso não faz sentido, ao menos na esfera judicial, a previsão de um ‘regime de transição’.” Dito de outro modo: um juiz não cria deveres, apenas cobra obrigações previstas em lei. São pilhados em malfeitos os gestores públicos que cometem malfeitorias. Sempre que isso ocorre, precisam de punição, não de “transição”.
Há na proposta um certo requinte de crueldade com o contribuinte brasileiro. Além de dificultar o combate à corrupção, cerceando o trabalho dos órgãos de controle e do próprio Judiciário, o projeto prevê o seguinte: “O agente público que tiver de se defender, em qualquer esfera, por ato ou conduta praticada no exercício regular de suas competências e em observância ao interesse geral terá direito ao apoio da entidade, inclusive nas despesas com a defesa.” No português das ruas: o sujeito é processado por suspeita de roubar o erário e o brasileiro em dia com a Receita Federal paga o advogado.
Noutro trecho, o projeto legaliza a seguinte armadilha: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.” Há mais: “A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.” No limite, se uma lei como essa estivesse em vigor há quatro anos, não haveria Lava Jato.
Flerta com o ridículo uma proposta que proíbe a punição com base em “valores jurídicos abstratos” e menciona do início ao fim abstrações como “interesses gerais”, “dificuldades reais”, “orientações gerais da época…” Ao condicionar o cancelamento de atos e contratos às “consequências práticas da decisão”, o projeto afirma, com outras palavras, o seguinte: “Se operações como a Lava Jato vão debilitar a Petrobras e a indústria da construção civil, é melhor buscar uma adequação da medida”. Ou, por outra: “Se houve corrupção na refinaria Abreu e Lima, mas a obra já está 40% pronta, convém levar em conta as consequências práticas antes de chutar o pau da barraca.”
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