segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Vergonha da desigualdade

“Essa não é uma sociedade que tem vergonha da desigualdade”. Não é mesmo, demorô, desde a escravidão, que desgraça. Anote ou guarde o mantra aí que depois pode fazer algum sentido, quem sabe lá no epílogo, na poeira dessa crônica, ave, você que julga, quem sou eu para dizer o que você pensa, simbora.

Por favor, como pedia o amigo Belchior, meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção, esconda um beijo pra mim, sob as dobras do blusão, eu quero um gole de cerveja, no seu copo, no seu colo e nesse bar... Não se esqueça, porém, do que deixei, qual uma fileira de telha, na cumeeira do texto, como quem deixa uma interrogação à guisa de goteira. Pra cima com a viga, moçada!

Para decorar, até datilografo o mantra e murmuro, é minha técnica, minha mania de não esquecer mesmo. O barulho da máquina de escrever... Cada dedo na letra é um sulco na memória. Ou um furo na página, no papel de cada um. “Essa não é uma sociedade que tem vergonha da desigualdade”. Meu bem, meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja.

Senta que lá vem João Dória, toda semana uma história triste para São Paulo, acho que já perdeu a graça esse não-político-mais-picareta-da-humanidade do paleolítico das civilizações. Agora mesmo passo aqui no Largo da Batata e reparo no sumiço do parquinho. Ligo no “SP TV”, opa, pasme, vejo uma matéria de primeira, esse César Tralli faz o melhor e mais crítico jornalismo da “Rede Globo” de todas as praças, parabéns, meu rapaz. Donde um “pleiba” da Regional Pinheiros diz que no parquinho juntava muito rato e outras testemunhas falam de mendigos. A velha tese escrota contra os “feios, sujos e malvados”.


Nossa! Mendigos lúdicos brincando no parquinho? Falaram também de ratos e baratas. Falações. Ah falam que um shopping tal, que preguiça, vai doar umas árvores etc, a noção Dória que tudo vai ser privatizado, inclusive a ideia de viver na cidade de SP. E pensar que havia uma coisa linda na área, coisa pensada, bonita mesmo, do pessoal do Erê Lab.

Essa destruição Dória, Doriana, dorianíssima, me lembra, doravante, o que vi, como cronista que até dormia nas ruas para experimentar a ideia de viver na cidade, as grandes invenções contra os desalmados e lascados à vera. Lembro, por exemplo, das rampas antimendigos do prefeito José Serra, assim como os bancos que impediam sonos e sonhos dos homens da rua, na gestão Kassab, os bancos com travas de ferro para impedir a deitada do corpo cansado aos fodidos de tudo. No que sempre só restava o chão. Uma vez no chão, como presenciei em reportagens tantas, a porrada, a porrada, a porrada, a guarda municipal e a polícia do Alckmin quebrando costelas. Não me cabe descrever agora a dor que senti aos gritos sob cassetetes, não há onomatopeia assombrosa que alcance a narrativa. Ninguém aguentaria a cobertura das dores reais dos fodidos de sempre. A gente finge que não existe para poder descrevê-las.

“Essa não é uma sociedade que tem vergonha da desigualdade”, soprou sabiamente o professor-filósofo Renato Janine Ribeiro, em entrevista à “Folha”. Frase que nos define no ano da graça de 2017. Vergonha própria e alheia. Carapuça para todos nós ou quase todos. Égua, vixe, oxe, caraca, fala sério, orra meu... e todas as exclamações regionalistas possíveis!

Ministro da Educação do Governo Dilma, mas sempre afinado com a autocrítica: “Os projetos do Lula foram os melhores da história do Brasil, mas não temos mais dinheiro na mesma medida. Não pode dizer simplesmente que vamos retomar os projetos petistas. Nenhum dos nomes cogitados está fazendo uma discussão séria de projeto para o Brasil”. Falou e disse. O que nos falta é vergonha na cara diante da desigualdade. Ponto parágrafo.

O professor-filósofo, guia deste cronista em muitos momentos obscuros, acabou de lançar o livro “A Boa Política” (Companhia das Letras). Ainda não li, mas, descaradamente, já gostei. Confio no taco do autor, assim como tenho consciência da grande sinuca histórica em que o país se meteu ao aderir ao golpe como que vai a uma quermesse ou a um programa de auditório televisivo.

Confio no taco filosófico, mesmo na crise, mesmo na falta de giz de todos os ensinos e na ausência de pelo menos um candeeiro ou um lampião iluminista. Metáforas bilharescas à parte, saudações populares e memorialísticas ao Brasil de Carne Frita, do Rui Chapéu e, sobretudo, à pátria do Meninão do Caixote —personagem de João Antônio, intérprete do submundo, escritor da marginalidade, cria da costela dos humilhados & ofendidos.

Somos analfabetos políticos e a primeira lição é ter vergonha na cara diante das desigualdades. Existe vida digna muito além dos Jardins, meu caro comandante da Rota, se é que o sr. me entende.

Xico Sá

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