Não tenho a mesma certeza da força da fé, sobretudo no universo político. Sem conhecimentos tecnológico e científico, tática e estratégia adequadas, a disposição de morrer por uma causa pode representar um autoextermínio em grande escala.
O que me atrai nisso tudo é estabelecer um nexo entre a crise ocidental e a brasileira; a mesma realidade, só que em dimensões diferentes.
No final do século, a European Science Foundation realizou uma ampla pesquisa e publicou cinco livros sobre ela. Um deles tem o título “O impacto dos valores”. A tese dos sociólogos e pesquisadores envolvidos no trabalho era que estava havendo uma mudança de valores. Esta mudança não era compreendida pelos governos que insistiam apenas em falar de melhorias materiais e mais riquezas, quando despontavam aspirações novas: desejos não materiais e emancipatórios. Isso acontece no Brasil em alguma escala, quando se defende qualidade de vida ou se constata o crescimento da espiritualidade.
Mas a crise ocidental, pelo menos no meu estudo ainda precário, acabou sendo atropelada, no Brasil, pelo colapso material e pela vulgaridade com que os valores são negados. A crise de valores no Ocidente refere–se à ausência de um sentido numa vida confortável e relativamente bem administrada.
No Brasil vivem-se a escassez e a roubalheira, o que nos dá a impressão de estarmos em outro compartimento; e só alcançaremos as angústias ocidentais quando sairmos do singular sufoco.
Discordo quando se fala em ausência total de valores no Ocidente e insinua-se a possibilidade de uma supremacia muçulmana. Quando acontecem atentados terroristas, governos e sociedade são unânimes em defender um valor essencial: a liberdade. Para ser mais preciso, as vítimas do terrorismo morreram porque vivem num mundo em que a democracia e a liberdade prevalecem.
Essa ideia de morrer por uma causa, que Onfray destaca nos muçulmanos, é romântica e já a adotei na juventude. Mas é inferior à ideia de viver humildemente por uma causa. Valores não materiais e emancipatórios combinam com a democracia e podem significar um avanço na sua inacabada trajetória. É uma aposta no futuro.
Por enquanto, no Brasil, vivemos ainda o que pode ser chamado de fase selvagem da decadência. A lei não vale para todos. Políticos nos assaltam de cara limpa. A elite nacional se recusa, por preconceito, a examinar o grave problema da violência urbana.
Os valores cambiantes na Europa já se anunciavam nos anos 60 e alguns acabaram se materializando na diversidade de lutas e no politicamente correto. Tudo isso tem um impacto bem grande no Novo Mundo. Nos Estados Unidos, a vitória de Trump representou uma espécie de antídoto ao politicamente correto. No Brasil, Bolsonaro encarna esta corrente conservadora, assustada com as ameaças voluntaristas à estabilidade da família.
Na verdade, a família hoje já está bem distante do modelo que os conservadores têm na cabeça. Mas ela existe e não pode ser ignorada, como querem alguns, impondo cartilhas de cima para baixo, avançando, sem diálogos num campo da educação que era exclusivo dela.
Creio que levarei muito tempo ainda para estabelecer todas as conexões entre a crise singular do Brasil e a crise envolvente dos valores ocidentais. O grande problema das duas, tanto aqui como lá, é que tornam atraentes as soluções autoritárias. Soluções externas, como o avanço muçulmano, ou de dentro, sofisticados sistemas de dominação tecnológica.
Um jovem executivo do Facebook já abandonou o trabalho e foi para um bunker se defender de um apocalipse que ele supõe ser o destino do avanço do mundo digital.
O fato de termos problemas anteriores a toda essa agitação crepuscular nos dá um fôlego para vivermos como no Velho Oeste, desejando que os xerifes expulsem os bandidos em todas as esferas em que atuam.
Mas será preciso fazer um esforço adicional para compreender o Brasil dentro do Ocidente. Sair da decadência galopante para a decadência elegante é uma rima, mas, como dizia o poeta Drummond, não é uma solução.
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