Ficou razoavelmente estabelecido que os custos da moderna atenção à saúde deveriam ser transferidos para um terceiro pagador, governos, seguros sociais ou empresas privadas de planos de saúde. De repente, a equivalência da saúde com carro ressurgiu, como argumento de defesa da revisão das normas legais para permitir a comercialização de planos com coberturas reduzidas. Funcionaria assim: o cliente terá acesso ao que existe de recursos assistenciais em um lugar, ou seja, quase nada em cidades pequenas ou localidades de municípios grandes; ou pagará menos de mensalidade e mais quando usar serviços. Não seria obrigatório que o plano-carro tenha motor, quatro rodas e bancos. Peças separadas poderiam ser vendidas. Empresas de planos e Santas Casas ficariam menos expostos à crise econômica e a restrições dos orçamentos públicos. E quem perdeu o emprego e o plano continuaria a recorrer a determinados serviços privados.
O ajuste seria perfeito não fossem os fatos. Existem problemas de saúde muito prevalentes como doenças cardiovasculares, traumas, cânceres, condições neurológicas, sofrimento mental. Pessoas doentes, especialmente casos graves, necessitam atendimento imediato e completo. Exames, cirurgias, terapias, medicamentos não são acessórios tais como som, acesso à internet e tapetes para carros. Plano de saúde significa pagamento antecipado para situações futuras imprevisíveis. Contratos de pré-pagamento são compromissos de transferência de riscos. O pós-pagamento, isto é, a remuneração após cada atendimento — como ocorre em clínicas privadas populares que oferecem consultas e exames mais baratos — sempre existiu e recentemente cresceu, inclusive em bairros residenciais de classe média. Quando o pagamento é antecipado, e o atendimento básico — essencial, para necessidades de saúde frequentes —, negado, a conta não fecha.
Qual é a solução? Depende dos interesses dos envolvidos. Os impulsos que movem a pesquisa e o progresso cientifico, tais como conhecer a verdade e evitar erros, não são necessariamente similares aos de setores empresariais e de autoridades governamentais. Estudiosos distinguem um sistema de atenção à saúde de um subconjunto de oferta ocasional de serviços. Para quem está do lado do conhecimento acadêmico, a alternativa é a afirmação de um sistema público abrangente e qualificado e de um setor privado autônomo, desvinculado de benesses públicas. A proposta de plano “semiplano misto SUS” não está conectada com qualquer teoria ou experiência concreta sobre organização de sistemas de saúde e, sim, com a influência econômica e política de empresas setoriais e as eleições de 2018. Assim, ao invés de debate e confronto de argumentos, predomina a reiteração de certezas baseadas nas dicotomias simplificadas entre estatal e privado e exibição de força.
O SUS não é um calhambeque. Tem até aqui obtido bons resultados na redução de riscos e superação de agravos individuais e coletivos, mas requer investimentos financeiros e reformas administrativas. Do setor privado, na categoria biturbo ficam poucos. Contam-se nos dedos os hospitais filantrópico-privados ou privados — quase todos localizados nas regiões Sul e Sudeste — que se modernizaram. Unidades isoladas públicas ou privadas, ainda que excelentes, não fazem as vezes de um sistema de saúde. Portanto, a divergência refere-se à busca de alternativas efetivas de inclusão ou radicalização da segmentação assistencial, e não ao fechamento ou estatização de serviços privados. “Gotejamento para baixo” ou assumir indiferença moral perante o sofrimento da maioria e estimular a “sucção dos recursos disponíveis para cima”? Depende de valores de solidariedade. Questionar o “semiplano privado misto público” — alcunhado de popular ou acessível — e as circunstâncias de tramitação de uma proposição que desmantela o SUS é obrigatório para os não indiferentes.
Ligia Bahia
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