quarta-feira, 14 de junho de 2017

Por que não compraram o país?

Outro dia um jornalista me perguntou por que nós, brasileiros, jogamos lixo na rua. Respondi pela infinitésima vez que — entre nós — preceitos feitos na intimidade da casa e entre amigos interferiam e geralmente tornavam-se mais importantes do que o civismo das ruas. Completei observando que tais hábitos são semiconscientes e, até hoje, não são percebidos como tendo poder de coerção pela maioria e até mesmo por muitos estudiosos da vida nacional. Para muitos, temos apenas “vida”, e não uma “vida social” com suas singularidades, constrições e linguagens.

Mas onde devo jogar o lixo? Se o devolvo à rua, estou apenas seguindo a lógica que comanda tirá-lo da casa, cuja “limpeza” deve ser impecável. A casa — e isso é básico — prevalece sobre a rua quando se trata de certos tipos de lixo. O lixo, tal como o luxo, tanto quanto leis, pessoas e instituições, é hierarquizado. Temos lixos “nojentos” — o mais sujo da sujeira — produzidos na cozinha e no banheiro cujo destino não deve ser nem a rua. O lixo jogado na calçada do vizinho é o que sai das limpezas periódicas da casa: papel, caixas, poeira ou resíduos de um “sujo” que não produz nojo.

Num condomínio no qual tenho feito pesquisas, é comum jogar lixo seco na calçada do vizinho. Afinal, fora da casa, o problema não é nosso, mas do governo. Felizmente, nem todos fazem isso. Mas, algumas vezes, cogitaram chamar a polícia. Mas e se a polícia também toma partido? Se todos têm os mesmos direitos, mas os deveres jamais são discutidos, a questão é saber se todos temos apenas direitos e nenhum dever. O que promoveria a reencarnação do nosso escravismo e das imunidades aristocráticas e monárquicas que — e essa é a questão — a República liquidou.

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O que isso tema a ver com o meu título?

Estamos nos aproximando do meio do século XXI e ainda não apreendemos que no capitalismo voraz e individualista a única solução é honrar as regras do jogo e confiar nos juízes.

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Toda democracia é imperfeita, mas ela pode corrigir-se. Penso que o nosso erro histórico-sociológico tem sido imaginar que se pode modificar a sociedade por meio do Estado. Como se leis impessoais, como revelou a axiomática jurídica luso-brasileira exibida nestes dias, pudessem corrigir e erradicar elos pessoais fundados no empenho, na propina e numa secular reciprocidade. A Constituição é, sem dúvida, cidadã. Mas onde estão os cidadãos neste país no qual a malandragem e o tirar vantagem de tudo é um valor?

Neste Brasil onde o conflito não é entre o capital e o trabalho, mas também e sobretudo entre o dinheiro e a política, com o agravo que a política pode ser comprada a grama, quilo e tonelada?

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Tudo isso para perguntar: por que os bilionários brasileiros que — com ajuda de bancos oficiais, fundos de pensão e partidos do governo em pleno e revolucionário poder — compraram presidentes, guerrilheiros, decretos, senadores, deputados, governadores, juízes, promotores, policiais e demais autoridades, não compraram logo o país?

Se a autoridade pública se avalia dona do Brasil e tem motivos para tanto, pois reside em palácios e só tem consciência dos seus direitos, por que não vender logo o país para tal ou qual grupo? Não seria mais honesto vender a nação para a direita ou para a esquerda quando se revela que há um jogo de compra e venda nos bastidores?

O problema não é simplesmente domesticar o capitalismo globalizado capaz de criar insuportáveis desigualdades, além de ser capaz de ferir mortalmente o planeta. Não! A questão é como domesticar a tal “política” que, na politicagem pornográfica (porque barata ela sempre foi e será), neutraliza qualquer justiça e, com a sua aura aristocrática, leva à pior das incertezas: aquela que faz duvidar da igualdade como um valor.

Pois como se sabe aqui em Niterói, não há justiça sem igualdade.

Apesar de todos esses conflitos escandalosos que mostram como nós gostamos de bater em cavalo morto, temos fatos novos. O primeiro é a consciência de que, sem o governo da lei, não há democracia igualitária. Já o segundo é algo inusitado: a prisão dos poderosos. A fria cadeia que horroriza a todos nós, tisnados que somos pelo modelito segundo o qual os ricos e os governantes jamais vão em cana — porque eles não eram presos, julgados ou acusados de coisa alguma.

Esse poder de singularizar negativamente pela privação da liberdade e pelo desmascaramento dos crimes — alguns com tonalidades patológicas — contra o bem comum é a nossa revolução. Com ela, reafirmamos que o governo tem limites e que até mesmo o poder tem que se submeter a alguma forma de moralidade. Aquilo que no universo das democracias é conhecido como opinião pública.

Roberto DaMatta

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