Gilmar poderia ter prosseguido em sua leitura de Monteiro Lobato. Em A reforma da natureza, Dona Benta, Tia Nastácia, Pedrinho, Narizinho e o Visconde de Sabugosa se mandam para a Europa, convocados a negociar um acordo de paz entre as nações. Sozinha no Sítio do Picapau Amarelo, a espevitada Emília se mete a brincar de Pisca-Pisca. Convida uma amiga a ajudá-la a reformar os “bissurdos” que encontra na natureza. A experiência é um desastre. Um tico-tico com a ninhada nas costas mal consegue voar, laranjas sem casca não resistem nos pés, bezerros passam fome diante da vaca com torneiras nos úberes, livros comestíveis são devorados pelo porquinho Rabicó, borboletas lerdas, moscas sem asas, pernilongos, pulgas e percevejos sem peçonha, até mesmo o rinoceronte Quindim vira uma quimera sem chifre, com patas e caudas de outros animais – para não falar nas jabuticabas e abóboras. Ao voltar da Europa, Dona Benta, chocada, manda Emília desfazer as reinações. Mas nem todas. Deixa o leite assobiar para avisar que ferveu, aprova mudanças nos insetos e até que certos livros se tornem comida. “Há muita coisa aproveitável”, diz resignada a Emília. Pois aí a reforma da natureza não acaba. Emília e o Visconde se metem em experimentos glandulares que espalham pelo mundo insetos gigantescos. Para explicar a um cientista estrangeiro como tudo fora possível, ela se sai com a seguinte pérola: “Nosso segredo é o Faz de Conta. Não há o que não se consiga quando o processo aplicado é o Faz de Conta”.
Em sua comparação, Gilmar só esqueceu o essencial. As leis da natureza não podem ser reformadas, já as humanas… Jogue-se sobre elas um pouquinho do pó de pirlimpimpim da retórica e pronto! Jabuticabas brotam feito cogumelos dos troncos da Justiça, começam a desabar sobre a cabeça de todos nós, mais um pouquinho e se tornam abóboras a rachar qualquer resquício de vergonha ou princípio ético. Não que a preocupação de Gilmar com a estabilidade seja descabida. Não se pode mesmo trocar de presidente a toda hora. Mas o que gera mais instabilidade? Condenar um governante por crimes comprovados ou mantê-lo no poder apesar deles, só para evitar mudanças de resultado incerto? Cada um terá sua resposta. Gilmar fica com o conservadorismo da fábula de Pisca-Pisca. Emília, alter ego de Lobato, não se faz de rogada: “O fabulista era um grande medroso; queria fazer uma fábula que desse razão ao seu medo de mudar”. Diante do julgamento do TSE, ainda completaria: “Bissurdo!”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário