Partimos de um labirinto. Há leis demais e órgãos públicos demais. As competências são sobrepostas, cruzadas, conflitantes. Nada pode ser definido com clareza, tudo pode sempre, e impunemente, não ser aquilo que parece.
A questão das prisões preventivas é exemplar. Onde está o ponto de equilíbrio entre a necessidade de forçar delações sem as quais não sairemos jamais desta “lenociniocracia” que mata mais de 60 mil por ano e a de assegurar respeito aos direitos individuais? Só há uma maneira boa – Winston Churchill dizia que era apenas a menos ruim – de resolver problemas como esse. Ninguém deu a isso resposta melhor que a elite do Iluminismo. Com 241 anos de aperfeiçoamentos do modelo do qual não adotamos ainda sequer os pilares da fidelidade da representação, da igualdade perante a lei e do controle do governo pelo povo, não falta com que começar. Não temos de inventar nada, temos só, como os japoneses, como os coreanos, como tanta gente de sucesso no mundo, de desinventar tudo o que inventaram para nos manter fora da democracia.
O problema é que não há como fazer isso de modo totalmente pacífico. Será preciso uma dose não pequena de criatividade e arbítrio para desmontar esta arapuca. O STF do bem deu um belo drible quando confirmou a legalidade das prisões a partir da 2.ª instância, a estaca zero do mundo civilizado da qual nunca deveríamos ter-nos afastado. Mas o outro abriu a porta da ratoeira. Deixar bandidos flagrados sem um horizonte previsível é decisivo para empurrá-los a uma delação premiada, mas é também o que define tecnicamente a ausência de um Estado de Direito. Agora, dizer que isso em que vivemos é um Estado de Direito...
Essa é a nossa “revolução fundadora”, porque não é mais uma opção deixar de fazê-la. Lula, com seu lendário senso epidérmico de oportunidade, deu-se conta imediatamente disso. Foi o que o tirou da depressão. Bem no ocaso da sua capacidade de incendiar plateias medida de cima dos palanques, caiu-lhe no colo o “argumento” capaz de “ressuscitar a militância” que andava com vergonha de mostrar sua carteirinha do partido.
O que, exatamente, amarra no mesmo enredo gente tão diferente quanto José Dirceu e sua guerra imaginária contra “ditadores” e “cães da ditadura” do milênio passado, na qual militância política e assalto a banco se confundem, os ministros do STF, com seus diferentes graus de suscetibilidade às tentações terrenas, Michel Temer e suas madalenas arrependidas, o cavaleiro errante de Curitiba e seus fiéis escudeiros do Ministério Público, o oportunismo atávico dos ladrõezinhos e dos ladravazes de dentro e de fora do Congresso e, pairando acima de todos, Luiz Inácio Lula da Silva, o reciclador geral da nossa mixórdia, em cujas mãos nada se perde, tudo se transforma em benefício do “eu”?
As ações e as intenções são genuinamente diferentes, mas na entrada, no meio do caminho ou na saída, o papel desempenhado por cada um desses atores tem mostrado uma mesma inconsistência. Um elo fraco que, na “hora H”, expõe seu flanco, afrouxa a sua garra e enseja que o filme recomece do zero.
A defesa, por ação ou omissão, da parte que a cada um deles cabe no latifúndio dos privilégios da estabilidade no emprego e do salário independente de resultado eternamente garantidos, das acumulações e dos “auxílios” para os quais o céu é o limite e das superaposentadorias precoces e frequentemente hereditárias onde tudo isso termina é que tem impedido que se feche o círculo e os põe a todos mais próximos uns dos outros do que de quem paga essa conta.
Os ladrões que uns prendem e os outros soltam são só os agentes de uma coisa muito maior e menos eventual. Toda essa roubalheira está a serviço de comprar as eleições, que não têm outra finalidade senão manter os “marajás” como e onde eles estão.
O populismo não é senão a socialização da corrupção. Lula, como sempre, confia cegamente na venalidade dos indivíduos e das massas e, para ele, é vencer ou vencer; ou a Presidência de um Brasil definitivamente venezuelizado, ou a cadeia. Não perde tempo com argumentos. Confia inteiramente na “escala” das esmolas que espalhou e do “poder de convencimento” que seus fiéis soldados José Dirceu e Marcelo Odebrecht lhe garantiram mantendo a roubalheira “antes, durante e depois” da Lava Jato para nos levar para esse Brasil sem imprensa e sem lei.
O Brasil do bem vai ter de se decidir. Não se ganha essa guerra sem o povo na rua e os argumentos do “acerto das contas públicas” e mesmo a ameaça do aquecimento do inferno em que já vivemos não mobiliza ninguém. O que, sim, une o resto do Brasil, que paga essa conta com miséria num horror cada vez mais visceral, é o privilégio, fora do qual e contra o qual todos eles hesitam em se colocar. Mas, da imprensa às tribunas do Congresso ou às bancas dos tribunais, essa é a chaga menos exposta e a palavra menos pronunciada no barulho todo que se fez até aqui.
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