terça-feira, 4 de abril de 2017

Vão terceirizar a vida?

A terceirização do contrato de trabalho – panaceia para uns, monstruosidade para outros – não é mera reforma da legislação laboral. Vai além: altera de tal forma a filosofia e a concepção do que seja o trabalho em si que pode virar resíduo medieval em plena modernidade do século 21. Lástima é que o debate se baseie em pequenos interesses de parte a parte, sem análise do significado profundo.

O trabalho é dignificante por ser inerente à vida. Todas as religiões, filosofias e doutrinas políticas têm como núcleo fundamental a natureza humana e, nela, trabalhar é o epicentro.

A terceirização irrestrita votada pela Câmara dos Deputados (e sancionada pelo presidente Temer quase nos mesmos termos) substitui a convivência pelo distanciamento. Desaparece a relação empresa-empregado. Não haverá trabalhadores nem empresários. O empregado não vai saber para quem trabalha e produz. A empresa não saberá a quem emprega ou a quem hierarquizar.

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Já não haverá diálogo, pois desconhecidos não se relacionam. Para ajuda mútua ou para reivindicar, um não conhecerá o outro, surgindo a desconfiança natural entre os que se ignoram ou se desconhecem.

Nem Marx e Engels, no Manifesto de 1848, nem Leão XIII com a Rerum Novarum ou os demais papas que encararam o drama social do mundo (do renovador João XXIII até Francisco, hoje), nem os grandes economistas, historiadores ou sociólogos jamais pensaram que o trabalho recebesse tratamento de máquina ou de objeto de uso descartável. Nem que o trabalhador fosse tratado pela lei como robô. Menos, ainda, de lei em nome da “reativação econômica”.

Quem deve ser o sujeito do esforço de “reativação econômica”, se não as pessoas?

Na “terceirização irrestrita”, a cabeceira da mesa, o “podium”, fica com os “atravessadores”. Esses novos (e supérfluos) intermediários entre capital e trabalho serão os grandes barões do capital, por um lado, e do trabalho, por outro, sem terem capital nem trabalho ou tecnologia.

Neste século 21, que enviou uma sonda a Marte e no qual a eletrônica abre novos mundos, o Brasil será campo de provas de um bizarro feudalismo, dando novos nomes a velhas formas de exploração humana.

A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho advertiu que o novo texto “rebaixará os salários e as condições laborais de milhões, fará do trabalho precário uma regra e agravará o quadro em que se encontram hoje 12 milhões de terceirizados contra 35 milhões de contratados diretamente, podendo até inverter esses números”.

Em contrapartida, os defensores – com olhos postos nos salários a pagar – afirmam que a nova lei “trará segurança jurídica”. Mas e a “segurança jurídica” de quem trabalha?

É absurdo que a lei atice e alimente a luta de classes em forma tosca e primitiva. E que nessa “luta” haja um vencedor artificialmente predefinido por parlamentares e partidos que nada representam. Santo Tomás de Aquino já advertia (e o papa Francisco o repete) que “o justo não é determinado pela lei, mas pela identidade profunda do ser humano”.

Pode-se terceirizar o âmago da condição humana – amor, amizade ou afeto?

A terceirização do erotismo, por exemplo, é a prostituição – aluga ou empresta algo a alguém sem amar ou dar-se a ninguém. “Terceirizar” é neologismo aqui inventado há 30 anos, desconhecido em Portugal e lá introduzido pelas telenovelas da Globo. Até bem pouco, não constava do dicionário de Aurélio de Holanda Ferreira, guia acatado e fiel. Passou ao vernáculo com Antônio Houaiss, como “contratar serviços de terceiros por uma empresa para realizar certas tarefas”.

No caso atual, é alugar alguém a um terceiro, como se aluga uma máquina – um trator no campo ou um carro em cidade alheia. É algo transitório, sem vínculos além do uso. Descartável, não difere daquelas canetinhas esferográficas compradas por centavos e que esquecemos em qualquer lugar.

São Josemaría Escrivá, um santo do século 20, que testemunhou a moderna tecnologia, aponta o trabalho como “caminho e forma profunda de santificação pessoal”. Agora, ao contrário, desaparecendo o trabalhador, o “prestador de serviços” imitará aquelas meninas de aluguel que oferecem carícias por hora, em troca de moeda.

A reforma da lei deve servir ao ser humano ou o ser humano deve servir à reforma?

Há uma gigantesca tributação sobre o trabalho, engolida no circuito burocrático, num carnaval de papéis e funcionários, alguns regiamente pagos e inúteis ou de duvidosa utilidade. Para o empregador, equivale a uma remuneração a mais, como se um empregado recebesse quase que por dois – para cada R$ 1 mil pagos, a empresa despende outros R$ 900 em contribuições sociais de difuso destino, às vezes tragadas pela corrupção.

Surge, então, o absurdo: a mais cara máquina torna-se mais barata do que um empregado de ínfima remuneração… Corrigir essa anomalia daria a verdadeira “segurança jurídica” que se apregoa como suposto fruto da “terceirização”.

Em 1932, os irmãos Júlio Mesquita Filho e Francisco Mesquita fizeram deste jornal um dos arautos da Revolução Constitucionalista com que São Paulo buscou corrigir os desvios da Revolução de 30. Jamais pensaram ou tentaram, porém, reverter (ou evitar) as já esboçadas conquistas dos trabalhadores que desembocaram nas leis trabalhistas, hoje consolidadas como código do Trabalho. Os sindicatos operários eram incipientes, mas o empresariado industrial paulista já emergia pujante, rumo a ser o principal eixo da economia do País. Há 85 anos, este empresariado que, por formação e tradição, poderia ser conservador, atrasado e míope, entendeu o significado do trabalho…

Entenderam o axioma comum a todas as encíclicas: “Não há capital sem trabalho nem trabalho sem capital”.

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