Ninguém o conhece hoje, mas eu o carrego na memória dos dias extasiados de minha juventude. José 318 (seu número de matrícula) era meu colega de colégio no final dos anos 50 e, sem dúvida, foi o cara mais inteligente que conheci na vida. Isso. Nunca vi cara tão genial aos 17 anos. Conversávamos muito de noite, sob as estrelas, na amurada da Urca, em frente à baía.
Uma vez, apontei para o universo e, filosófico, arrisquei minha perplexidade: “Afinal, o que é isso tudo?”
– Não “é” nada – respondeu José, com suave discordância.
– Como “nada?” – estranhei.
– A pergunta está errada por achar que o universo “é” alguma coisa. O problema é a nossa linguagem limitada, como se o universo fosse “algo” fora dele mesmo. Não dá para usar o verbo “haver ou ser”.
– Como assim? – numa pergunta típica de mau diálogo.
– Tudo e nada são a mesma coisa. São impensáveis. A ideia de “nada” e de “tudo” é uma ideia de viventes. Como você vai morrer, o seu cérebro se programa para imaginar que “há” uma coisa e “não há” outra. De que há o “cheio” e o “vazio”, de que há o vivo e o morto. Ideia de viventes.
Eu pasmava diante de seu raciocínio luminoso. José vivia sozinho pelos corredores do colégio. E eu o perseguia em busca de conversas, desde o dia em que, maravilhado e humilhado, ouvi-o falar sobre Popper, o filósofo da ciência. Eu nem sabia quem era, e ele me mostrou, com frases em inglês, que “the rule of thumb”, segundo Popper, era um modo tosco de se aferir alguma verdade. “Quem será esse cara?”, pensei.
Ele não falava com ninguém, e eu me sentia honrado por sua atenção.
Assim, começamos uma tímida amizade, em que eu refreava minha admiração para não sucumbir de inveja. O “318” não era apenas um solitário – ele via coisas transcendentais com um olho interior.
Eu perguntava, e ele respondia, e, para evitar o vexame, eu discutia a partir de coisas que ele próprio afirmara – velha técnica dialogal que ele aceitava, com doce tolerância.
Ele não tinha cara de gênio, mas era.
Uma vez, quebrou o braço e ficou uns dois dias no hospital. Lá, escreveu alguns versos e me mostrou rindo – eram poesias em prosa, meio “rimbaldianas”. Tremi de emoção: eram poemas de alto nível; lembro-me de um, em que uma princesa de sandálias de ouro andava sobre a neve, com um lobo negro. Ele ria de si mesmo, de seu delírio “metafísico”.
Em outra ocasião, entrou em cartaz um filme chamado “Planeta Proibido”. Fui ver com ele. O “Planeta Proibido” era desabitado a não ser por um robô e pela herança de um povo morto, os Krells, sumidos num buraco negro que continha todas as informações da história do planeta. Só não havia mais habitantes. Para onde teriam ido?
José 318 me falou: “Acho que esse planeta é a Terra daqui a mil anos. Um dia só haverá informações sem homens”. Estávamos em 1957, e nem se sonhava com internet.
Outra vez, ele me disse, de repente, como resolvendo um problema: “O ‘nada’ tem massa!”
– Que quer dizer isso? – balbuciei.
– Eu li numa revista de ciência que descobriram uma partícula chamada “neutrino”.
– Que porra é essa? – interrompi, ostentando desprezo por novidades científicas.
Estávamos na amurada da praia da Urca, sob as estrelas. Falei uma frase jocosa do Eça de Queiroz para impressioná-lo:
“As estrelas são a lepra luminosa na face de Deus”. Ele nem prestou atenção, olhando para o alto.
– O nada tem massa – repetiu –. Os neutrinos estão em todo o universo, têm massa e atravessam qualquer matéria. São invisíveis, mas ocupam todo o espaço. O invisível tem massa, e isso é sinal de que não há o “nada”. Nada não há. É impossível pensar o “nada”. Como pensar o tempo. O tempo é que nos pensa.
– E Deus? – fiz a pergunta essencial.
– Deus é a Substância. E nós, humanos, somos atributos dela. A Substância eterna e imutável simplesmente é. Não há Deus de um lado e as coisas do outro. Logo, Deus é a única coisa que existe.
Naqueles anos de colégio, ele foi para o curso científico, e eu, para ciências humanas. A partir daí, eu o via pouco. Andava com uns “nerds” de óculos de tartaruga ligados à matemática. Eles conversavam em voz baixa, e às vezes eu me infiltrava e fingia entender coisas sobre teoria quântica etc.
Um dia, José sumiu. Disseram que ele estava doente.
Fui visitá-lo na Tijuca, um apartamento pequeno em um primeiro andar. Ele estava de pijama listrado, numa cadeira de balanço em frente à janela. A mãe cuidava dele com os parcos remédios da época... Estava bem mais magro, com uma cor baça, um vago tom de cinza. Ficamos conversando, evitando qualquer assunto que lembrasse sua fraca condição. Ele percebia e embarcava na conversa evasiva – “aah... porque o Flamengo, porque isso, aquilo...”.
E a tarde ia caindo, e sua mãe trazia os remédios e chá. Ligou a TV em preto e branco de pés de palito, enquanto a noite enegrecia o céu de verão.
Falei da poesia da princesa, que eu tinha lido há anos. Riu: “Matemática é mais poética...” E o céu se enchia de estrelas.
– O Centauro! – ele falou.
– O quê?
– A constelação. Tudo é uma chuva eterna de átomos. Espinosa, Lucrécio e Shakespeare sabiam que “nada vem do nada”. Estamos envolvidos por um caldo de cultura infinito, onde parece que boiamos; apenas “parece”, pois somos também o caldo onde boiamos.
Lembro-me de que ele ainda falou que a Matéria quer sossego, quer voltar à inércia original, e nosso corpo também.
Na TV, a tosca novela soava baixinho, diante da mãe triste.
Soube depois que eles voltaram para o interior e que o 318 tinha morrido.
Lembrei-me de uma frase: “Ele partiu assim como um trem em direção às estrelas”.
Era uma frase do Antonin Artaud sobre o suicídio de Van Gogh.
Na época, eu nem sabia quem tinha sido Antonin Artaud, mas José tinha-me ensinado, ali, sob o céu cintilante, sentados na amurada em frente ao mar.
Ele não falava com ninguém, e eu me sentia honrado por sua atenção.
Assim, começamos uma tímida amizade, em que eu refreava minha admiração para não sucumbir de inveja. O “318” não era apenas um solitário – ele via coisas transcendentais com um olho interior.
Eu perguntava, e ele respondia, e, para evitar o vexame, eu discutia a partir de coisas que ele próprio afirmara – velha técnica dialogal que ele aceitava, com doce tolerância.
Ele não tinha cara de gênio, mas era.
Uma vez, quebrou o braço e ficou uns dois dias no hospital. Lá, escreveu alguns versos e me mostrou rindo – eram poesias em prosa, meio “rimbaldianas”. Tremi de emoção: eram poemas de alto nível; lembro-me de um, em que uma princesa de sandálias de ouro andava sobre a neve, com um lobo negro. Ele ria de si mesmo, de seu delírio “metafísico”.
Em outra ocasião, entrou em cartaz um filme chamado “Planeta Proibido”. Fui ver com ele. O “Planeta Proibido” era desabitado a não ser por um robô e pela herança de um povo morto, os Krells, sumidos num buraco negro que continha todas as informações da história do planeta. Só não havia mais habitantes. Para onde teriam ido?
José 318 me falou: “Acho que esse planeta é a Terra daqui a mil anos. Um dia só haverá informações sem homens”. Estávamos em 1957, e nem se sonhava com internet.
Outra vez, ele me disse, de repente, como resolvendo um problema: “O ‘nada’ tem massa!”
– Que quer dizer isso? – balbuciei.
– Eu li numa revista de ciência que descobriram uma partícula chamada “neutrino”.
– Que porra é essa? – interrompi, ostentando desprezo por novidades científicas.
Estávamos na amurada da praia da Urca, sob as estrelas. Falei uma frase jocosa do Eça de Queiroz para impressioná-lo:
“As estrelas são a lepra luminosa na face de Deus”. Ele nem prestou atenção, olhando para o alto.
– O nada tem massa – repetiu –. Os neutrinos estão em todo o universo, têm massa e atravessam qualquer matéria. São invisíveis, mas ocupam todo o espaço. O invisível tem massa, e isso é sinal de que não há o “nada”. Nada não há. É impossível pensar o “nada”. Como pensar o tempo. O tempo é que nos pensa.
– E Deus? – fiz a pergunta essencial.
– Deus é a Substância. E nós, humanos, somos atributos dela. A Substância eterna e imutável simplesmente é. Não há Deus de um lado e as coisas do outro. Logo, Deus é a única coisa que existe.
Naqueles anos de colégio, ele foi para o curso científico, e eu, para ciências humanas. A partir daí, eu o via pouco. Andava com uns “nerds” de óculos de tartaruga ligados à matemática. Eles conversavam em voz baixa, e às vezes eu me infiltrava e fingia entender coisas sobre teoria quântica etc.
Um dia, José sumiu. Disseram que ele estava doente.
Fui visitá-lo na Tijuca, um apartamento pequeno em um primeiro andar. Ele estava de pijama listrado, numa cadeira de balanço em frente à janela. A mãe cuidava dele com os parcos remédios da época... Estava bem mais magro, com uma cor baça, um vago tom de cinza. Ficamos conversando, evitando qualquer assunto que lembrasse sua fraca condição. Ele percebia e embarcava na conversa evasiva – “aah... porque o Flamengo, porque isso, aquilo...”.
E a tarde ia caindo, e sua mãe trazia os remédios e chá. Ligou a TV em preto e branco de pés de palito, enquanto a noite enegrecia o céu de verão.
Falei da poesia da princesa, que eu tinha lido há anos. Riu: “Matemática é mais poética...” E o céu se enchia de estrelas.
– O Centauro! – ele falou.
– O quê?
– A constelação. Tudo é uma chuva eterna de átomos. Espinosa, Lucrécio e Shakespeare sabiam que “nada vem do nada”. Estamos envolvidos por um caldo de cultura infinito, onde parece que boiamos; apenas “parece”, pois somos também o caldo onde boiamos.
Lembro-me de que ele ainda falou que a Matéria quer sossego, quer voltar à inércia original, e nosso corpo também.
Na TV, a tosca novela soava baixinho, diante da mãe triste.
Soube depois que eles voltaram para o interior e que o 318 tinha morrido.
Lembrei-me de uma frase: “Ele partiu assim como um trem em direção às estrelas”.
Era uma frase do Antonin Artaud sobre o suicídio de Van Gogh.
Na época, eu nem sabia quem tinha sido Antonin Artaud, mas José tinha-me ensinado, ali, sob o céu cintilante, sentados na amurada em frente ao mar.
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