Um mago consultado diz que, aos 80, a alma fala com a consciência, os neurônios com o cérebro. Desta plataforma, eles mandam bilhetinhos para a mente, que telegrafa ao espírito.
É normal!, diz-me o bruxo fumando um baseado. Coriscos e relâmpagos intrusivos cruzam-se num permanente, mas nem sempre explícito, diálogo do “eu” consigo mesmo, pois o “eu” não está só. Ele é assolado de fora e de dentro por afrontas, notícias e algum terrorismo – além de velhos desejos e fantasias. Esse fluxo incessante faz um carnaval. A realidade tem muitas fantasias.
Foi assim que acumulei, ao longo da semana, estranhamentos e indagações um tanto incompatíveis com a idade calhada a sabedora e a bíblica quietude – aquele conformismo próprio dos velhinhos bondosos e puros. O que não é, definitivamente, o meu caso.
Mas não tem sido sempre assim, quando eu esperava a “barca” a ligar Niterói com o mundo? Na enorme fila, eu já não sentia a ansiedade do que chamamos de vida consciente, ali aguçada pela perspectiva da jornada no balanço do mar? Não era essa travessia o modelo das escolhas profissionais que a casa e a sociedade me obrigavam a fazer, quando casualmente perguntavam: o que você vai ser – ou seja: o que será de você?
– Por que não és um ricaço? Os ricos não esperam! – ainda diz um sujeito inconformado dentro da minha cabeça. Mal pacifico essa impertinência, ouço uma outra indagação trivializada nestes tempos de roubos do Brasil pelo Brasil: por que não fostes um político cunhado na frieza, na ambição, no conhecimento dos regulamentos que ninguém lê e na desonestidade? Além de milionário, tal senda faria de ti um poderoso protagonista no labirinto do teatro nacional.
Será que eu não teria ido mais longe ou “me arrumado”, se tivesse escolhido um outro caminho? Em vez de livros; dinheiro? Em vez de individualidade; uma turma e um cartão partidário? Quem sabe a marquetagem teria resolvido minha inveja, meu narcisismo e – eis a questão – a minha vergonhosa conta bancária?
Mas qual...
Infelizmente, escolhi não uma “ciência exata”, daquelas que explicam o mundo, mas uma disciplina meio histórica e literária, que desiste dos números, tem como centro a comparação por contraste e, por isso, recusa o trivial. Diferentemente das outras “ciências sociais”, a antropologia que pratico revela muitos modos de vida. Todos equivalentes e todos com o potencial de serem dignos e indignos, honrados ou execrados. Além desse deslocamento da contemporaneidade, que confundimos com “avanço” e modernidade, seu método é um oximoro: a chamada “observação participante”.
Porque o observar e analisar, usando a própria consciência como instrumento, impede o participar. E o participar, com seus afetos, gozos e nojos, impede o observar. Pode-se atacar uma feijoada ou o amor, tomando notas? Não é impossível, mas não é para qualquer um.
O “observar/participando” não é inútil, mas é uma contradição em termos tipo “inteligência militar”, “político honesto”, “profundidade jornalística” ou “radicalismo equilibrado”.
Guardando as devidas proporções, é como compreender por que o Brasil foi roubado por seus mais amados governantes. Pois como decifrar o populismo lulo-petista sem passar pelo triste capítulo do acordo com os ricos para roubar os pobres, que o elegeram e dos quais foi esperança? Eis o grande programa ideológico do genial Bertolt Brecht virado pelo avesso. Eis o mistério pateticamente trazido à luz por uma Other-Brecht, a qual transformou a ópera dos vinténs num infame jogo de bilhões.
Mas voltando ao microbalanço dessa caminhada de 80 vezes 365, devo dizer que eu não trocaria esses dias de espinhos, rosas e algum uísque, angústia e muito amor e música de Sinatra – por coisa alguma. Podemos sair de um papel, conforme temos visto envergonhados nos jornais, quando descobrimos figuras públicas como ladrões. Mas – como ensinava Shakespeare – só saímos de nossas vidas quando deixamos o palco.
Por outro lado, sabemos que o morto é uma entidade sem papéis. Na morte, viramos tudo o que os outros querem e, depois disso, somos esquecidos.
Mas, do ponto de vista da terra do nada, tudo o que vivemos é mágico e maravilhoso. Mesmo o dia mais infeliz é uma realização, mesmo o abandono e a solidão mais punitiva, é parte da magia da saudade. Essa palavra que esses 80 me presenteiam, pois, como aprendi com Joaquim Nabuco, ela – a saudade – está nos túmulos e nas cartas de amor.
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