Não, não me refiro aos notórios corruptos. Nem da justiça que não os trancafiam no xilindró. Falo daqueles que apoiaram o AI-5, sabiam que havia tortura e morte nos porões da repressão, e hoje fazem cara de paisagem quando se discute se a tortura é passível ou não de anistia. Falo de ex-ministros da ditadura que não se envergonham de falar, em tom de crítica, do “regime autoritário”, confiantes de que o Brasil e os brasileiros não têm memória. Falo das pessoas que usam o celular enquanto dirigem. Falo daqueles que cospem no chão. Falo de todos que são incapazes de um gesto de ternura.
Não, não falo apenas daqueles que fazem jogadas no mercado financeiro. Falo dos magistrados que negam habeas corpus a uma mulher que pixou paredes do Museu de Arte Moderna de São Paulo, mas são rápidos em ordenar a libertação de corruptos e criminosos. Falo dos brasileiros que poluem as praias, provocam incêndios criminosos, são traficantes de animais silvestres, de mulheres, de crianças, de órgãos humanos, de armas e drogas. Falo contra as autoridades brasileiras que estimulam o não saber, a incultura e a ignorância. Falo das autoridades que reduzem os impostos dos automóveis, mas não fazem nada semelhante em relação aos livros e às artes em geral.
O trambique é a fraude das fraudes. O trambique age sorrateiramente, faz parte da cultura brasileira, soma-se à ideologia do “primeiro eu”, do “tirar vantagem em tudo”, da “farinha pouca meu pirão primeiro”, do “depois de mim, o dilúvio”, do “sabe com quem está falando”, do “meu cargo me dá esse direito”, do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O trambique impregna e mutila o caráter nacional brasileira, age como uma lagarta que rói as folhas das plantas.
Falo, enfim, das elites brasileiras, que deram as costas ao povo brasileiro. Que enxergam no povo uma espécie de carvão, a ser queimado e gasto na produção. Falo das autoridades que dão maus exemplos. Falo dos donos do poder e do poder dos donos. Falo dos embusteiros. Falo daqueles que riem alegremente quando o presidente utiliza palavras chulas e expressões vulgares em meio a discursos que deveriam ser sérios. Falo dos comentaristas políticos de meia tigela, que bajulam o poder. Falo dos analistas econômicos que, em razão da crise, querem o fim das leis trabalhistas, mas nada falam sobre os lucros exorbitantes dos bancos, das grandes empresas e das remessas ilícitas de lucros para o exterior.
Falo dos arrastões, dos políticos que se dizem preocupados com o desemprego, mas recebem verbas ordinárias e extraordinárias – sem a necessidade, comum aos mortais, de prestar contas e devolver o excedente. Falo dos brasileiros que estão conformados com o que fomos, somos e seremos – o país do futuro, do carnaval, do futebol, da cervejinha gelada, do cafezinho requentado, do pão de queijo borrachudo.
Falo, enfim, dos brasileiros que aceitam com resignação a mais vergonhosa das nossas heranças históricas: a consciência da trambicagem.
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