segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Tuberculose na Rocinha expõe o Brasil que estacionou no século XIX

Moradora da Rocinha com tuberculose. / Victor Moriyama
O sol forte que ilumina o Rio de Janeiro não chega na casa de Maria Irenice Silva, moradora da favela da Rocinha de 30 anos. Ela vive com a pequena Maria Victoria, sua filha de dois anos, em um cubículo no chamado “beco dos malucos”, onde a sombra é permanente e a única iluminação vem das lâmpadas automáticas instaladas do lado de fora —inclusive ao meio-dia de um sábado de agosto. Sua casa é térrea, embaixo de várias outras, e fica no final da descida dessa estreita passagem. O forte cheiro de mofo, que cobriu todas as paredes ao longo dos anos, talvez décadas, se mistura com o da vala de esgoto que corre do lado de fora. O teto é baixo. A única janela, minúscula, está fechada com uma toalha para que os ratos não entrem à noite, e um antiquíssimo ar-condicionado Consul ligado permanentemente dá conta da ventilação. Mas o oxigênio mal entra no pulmão.

“Nice”, como é conhecida entre as dezenas de vizinhos que vivem praticamente grudados lado a lado nesse beco, é uma das mais de três centenas de pessoas que têm tuberculose na Rocinha. Trata-se de uma doença infecciosa, transmitida pelo ar, causada por uma bactéria (bacilo) que afeta principalmente os pulmões —os ossos e o sistema nervoso também podem ser atacados. Perda de apetite, tosse por mais de três semanas, irritação e cansaço são alguns dos sintomas, que podem ser confundidos com uma pneumonia ou gripe comum. Ainda que seja tão antiga quanto a colonização portuguesa no Brasil e tão esquecida pela população e até por profissionais da saúde, a tuberculose está longe de ser eliminada porque se trata, principalmente, de um problema social, histórico e urbano. O tratamento é acessível e a cura é possível. O problema é a prevenção: ela se dissemina mais facilmente em áreas de grandes aglomerações de pessoas e de alta concentração de pobreza, onde os ambientes são fechados, sem entrada de luz solar ou circulação de ar. Como no beco onde vive Nice e em praticamente toda a Rocinha.

Esta favela, localizada na zona sul do Rio de Janeiro e com mais de 100.000 moradores, é normalmente apontada por especialistas como um dos principais focos de tuberculose de todo o país: a partir dos casos registrados pela Prefeitura do Rio, possui uma taxa de incidência de 372 casos por 100.000 habitantes, 11 vezes mais alta que a média nacional. Em 2014, o país registrou 68.467 casos (33,8 por 100.000 habitantes), o que o colocou na 17ª posição entre os 22 países que concentram 80% dos casos de tuberculose do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Na verdade, não é que a Rocinha tenha o mais alto índice do país, mas sim que esse mesmo perfil econômico, social e urbano se reproduz em outros lugares, como Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Maré, Rio das Pedras…”, argumenta Carlos Basilio, psicólogo e ativista do Observatório de Tuberculose no Brasil. Para ele e outros especialistas, as demais áreas e grupos de pessoas vulneráveis do Rio de Janeiro e do país —favelas, presídios superlotados, população indígena, moradores de rua, entre outros— ainda não possuem dados suficientes, enquanto a Rocinha vem sendo estudada há vários anos. A alta taxa de incidência da doença em seu território expõe uma agenda social do século XIX no Brasil que ainda está longe de ser superada. Em países desenvolvidos —e até mesmo em Cuba—, a taxa de incidência é tão baixa que a OMS considera a doença já eliminada
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