quarta-feira, 8 de novembro de 2023

E todo o mundo ouve

Hitchcock afirmou que “drama é a vida sem os pedaços aborrecidos” — drama is life with the dull bits cut out. E tem razão: a ficção salienta os momentos em que se vive mais intensamente, por boas ou más razões. Mas, para que esses momentos sobressaiam de forma notável, é necessário estabelecer contextos que lhes permitam revelar-se.


No filme Sozinho em Casa, por exemplo, é crucial sabermos que Kevin é o mais novo de uma família de 11 crianças, justificando-se assim que seja esquecido em casa. Em O Tubarão, de Spielberg, importa ficarmos a conhecer a vida social e política da pequena ilha estival onde aparece um tubarão devorador de pessoas: a ação dos protagonistas é enquadrada por este contexto narrativo inicial. Aliás, Spielberg vai desde logo direto ao assunto: desenha o breve contexto de uma praia em que jovens convivem em redor de uma fogueira à noite, de onde passa para o ataque do tubarão a uma jovem que decide tomar um banho ao luar. Logo de seguida conhecemos o xerife local, a sua família e a relação com o mayor da ilha. Em ambos os casos, sendo breve ou longo, atrás ou à frente do momento do incidente inicial, o contexto tem de ser dado, sob pena de a narrativa se tornar aleatória ou injustificada.

Em cinema é comum considerar-se que o contexto é a pedra angular da clareza narrativa, que, por sua vez, será tanto maior quanto mais forte for a relação de causalidade entre as cenas: passamos do ataque do tubarão para o xerife da vila e não para qualquer outra personagem sem a responsabilidade de manter a população em segurança — estaríamos, nesse caso, perante uma causalidade mais fraca.

Na realidade, assim é na vida: tudo é causal. Uma série de acontecimentos exteriores a este texto motivaram a sua escrita. Os meus actos derivam do meu contexto e das leituras que dele faço. Nesse sentido, um filme sobre a atual guerra no Médio Oriente até poderia começar no dia 7 de Outubro, com o hediondo ataque do Hamas. Mas — e este “mas” é tudo —, sem posterior contextualização e sem uma leitura das várias e fortíssimas causalidades em campo, ficamos reduzidos a uma narrativa aleatória, à mercê de interesses e interpretações das forças em conflito.

Nesse hipotético filme sem contexto para trás, assistiríamos apenas a um bando de homens maus a atacar pessoas felizes que viviam em paz nos seus territórios. Uma vez estabelecido o contexto, viria à luz uma informação relevante: esses territórios, onde estas pessoas felizes foram atacadas e raptadas, são, na sua larga maioria, terras ocupadas de forma ilegítima, ao arrepio do direito internacional e com enorme perda e dor para a população palestiniana. Pelo menos em cinema, a identificação do problema inicial pode não legitimar ou justificar todas as ações subsequentes, mas, narrativamente, está sempre presente; faz parte do plot.

Enquanto a montante estiverem reunidas as condições para o conflito, Israel não terá nunca toda a razão do seu lado. Não pode nenhum povo, em nome da sua sobrevivência, ou por qualquer outro motivo, ocupar e/ou aniquilar outro. Não existe nenhum contexto humano que o justifique — e Israel devia sabê-lo.

Para muitos de nós, tornou-se insuportável ver as imagens tristes que chegam de Gaza, que sucederam às terríveis imagens de Israel. Porque nos fazem chorar, de tristeza, vergonha, raiva ou impotência. No entanto, sugiro que as vejamos. E que choremos, à vontade e com vontade. Porque são estas lágrimas, instintivas, causais, que chegam ao coração de pessoas justas, que falam em nosso nome — e todo o mundo ouve.

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