Contei 49 mortos – entre eles estão 36 membros da minha família. Mais uma dúzia ou mais ainda estão desaparecidos sob os escombros de oito casas, segundo me disseram, e mais de 100 estão feridos.
Agora moro no Canadá, mas a casa da minha família ainda fica no mesmo campo de Khan Yunis, a poucos metros de onde as bombas caíram, e é onde grande parte da minha família ainda vive. Esta casa é tudo o que restou dos nossos falecidos pais e avós depois de terem sido expulsos da aldeia de Beit Daras para a Faixa de Gaza em 1948 – a expulsão em massa dos palestinianos. Milhares de pessoas foram forçadas a deixar a nossa aldeia naquela época e muitas seguiram para Khan Yunis. Inicialmente concebido como uma paragem temporária até que pudessem regressar às suas casas, as famílias de Beit Daras preferiram viver próximas umas das outras. Com o tempo, esse arranjo evoluiu para outro duradouro.
Essas casas estavam repletas de pessoas que tinham fugido do bombardeio israelense à cidade de Gaza – uma família por cada quarto. Quero contar a vocês sobre algumas vidas interrompidas.
Julia Abu Hussein, de dois anos, neta da minha irmã, estava na sala da casa da minha família, aguardando ansiosamente a chegada da minha sobrinha, Rasha, para levá-la à loja para comprar doces. Quando as primeiras bombas caíram, a mãe de Julia, Rawan, agarrou a filha e correu para a cozinha com o resto da família. Mas um estilhaço atingiu a cozinha e matou Júlia nos braços da mãe.
Há apenas duas semanas os pais de Júlia – o meu sobrinho Amjad e a sua mulher, Rawan – seguiram as ordens dos militares israelenses de saírem de Gaza, abandonando a sua casa e deslocando-se para Sul em busca de segurança. Juntamente com a família da minha irmã, levaram três dias para viajar menos de 32 quilómetros até Khan Yunis, Durante três dias acreditávamos que estivessem mortos. Estamos em 2023, mas é como se tivéssemos acordado em 1948. Pessoas voltando a correr em busca de segurança. Quando chegaram à “zona segura” perceberam que nenhum lugar na Faixa de Gaza era realmente seguro.
Meu tio-avô de 79 anos, Nayif Abu Shammala, professor aposentado, e sua mulher, Fathiya, estão entre os sobreviventes da expulsão em massa dos palestino em 1948. Eles moravam bem na nossa frente e morreram sob as bombas. Suas três filhas e quatro filhos também foram mortos.
Quando ela era jovem, uma delas, Aisha, era conhecida como o rosto mais fofo do acampamento. Ela era uma daquelas pessoas que irradiava felicidade. Sua irmã Dawlat morava nos Emirados Árabes Unidos e estava visitando sua casa para ver sua família quando as bombas caíram. Ela deixa dois filhos e um marido que nem teve a chance de se despedir dela. A mais nova das irmãs, Umaima, e a sua filha Malak também fugiram do bombardeio no Norte. Mas as bombas os alcançaram de qualquer maneira.
Os filhos de Nayif e Fathiya – Zuhair, Hassan, Mahmoud e Mohammed – morreram todos junto com suas mulheres. As vidas dos três filhos de Hassan também foram sacrificadas pelas bombas. Essas crianças não são estranhos distantes; eram almas lindas que eu conhecia bem. Crianças cujos rostos cheios de personalidade ainda consigo ver. Crianças que me contaram seus sonhos para as vidas que teriam pela frente. Tudo agora foi reduzido ao pó.
Por que Israel os matou? A família não tem filiações políticas. Nada pode justificar o crime hediondo de matar três gerações, a menos que o criminoso seja palestino.
Minha tia-avó, Um Said, viveu uma vida longa, pelo menos. Ela tinha 92 anos e estava em casa com a filha, Najat, quando as bombas caíram. Ambas agora encontram seu lugar de descanso sob os escombros.
No verão passado, quando visitei Gaza, Um Said gentilmente me deu um vestido bordado que ela usou uma vez. Ela insistiu que eu o levasse de volta para o Canadá comigo. Estou grata por ter feito isso. É tudo o que me resta para me lembrar dela.
Estou lutando para encontrar novas maneiras de descrever a morte – desaparecidos, levados, mortos, sob os escombros, suas almas no céu. A máquina de propaganda israelemse diz-me que eles não estão mortos porque os palestinos devem estar a mentir sobre o número de mortes, mesmo enquanto as lamentamos. Ou se de fato morreram foi porque devem ser “terroristas”.
A nora de Um Said, Suhaila, era professora. O mesmo acontecia com Imtiyaz, mulher de Asa’ad, meu primo-irmão que administrava uma pequena mercearia, o lugar favorito de meu próprio filho, Aziz, quando voltávamos para nossa terra natal.
Asa’ad era conhecido em todo o acampamento Khan Yunis como uma alma gentil que vendia mercadorias por pouco dinheiro. Ele mantinha um denso registro com os nomes das pessoas que lhe deviam dinheiro, mas muitas vezes se esquecia de cobrar. Seu rosto radiante, sua loja, sua gentileza e sua família foram todos roubados de nós em plena luz do dia. Quando as bombas caíram, a loja de Asa’ad estava lotada. Contei pelo menos seis crianças que morreram lá. Os filhos de Asa’ad, Hussein e Abdelrahman, um estudante do terceiro ano de medicina, estavam entre os mortos.
Quero perguntar ao presidente Joe Biden porque é que ele apoia isto. Será que ele acredita que a dor de uma mãe israelense é diferente da de uma mãe palestina? O sangue dela é mais valioso do que o sangue dos que estão em Gaza? Esta é a única explicação que consigo encontrar para o que Biden apoie o que se passa em Gaza.
Os familiares sobreviventes me enviaram fotos de Khan Yunis. Do corpo ensanguentado de Julia enrolado em um lençol branco e carregado por meu primo Jameel, de casas destruídas. Esta é apenas uma pequena fatia do sofrimento que é servido em Gaza. Entendo que numa guerra morrem civis. Mas este é um padrão.
Israel fala em escolas geridas pelo Hamas e em hospitais geridos pelo Hamas para continuar a desumanização dos palestinos e preparar o terreno para mais crimes. É apenas uma desculpa para matar mais civis. Isto tem como alvo a própria existência dos palestinos. Para mim, isso é genocídio.
Ghada Ageel, uma refugiada palestina de terceira geração, trabalhou como tradutora para o The Guardian em Gaza de 2000 a 2006. Atualmente é professora visitante no departamento de ciência política da Universidade de Alberta.
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