Após quatro anos de ataques sistemáticos a jornalistas e veículos de comunicação sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Brasil subiu 18 posições na edição de 2023 do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, da ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF). O país saltou da 110ª para a 92º posição do levantamento divulgado nesta quarta-feira (03/05), Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.
Mesmo com o salto no ranking, classificado pela organização como um "recorde" dentro do continente americano, o Brasil ainda segue em uma situação de liberdade de imprensa considerada "problemática" pelo estudo – e bem distante de outras nações da mesma região. Muito à frente do Brasil, Uruguai (52º), Estados Unidos (45º), Argentina (40º) e Costa Rica (23º) têm a situação de liberdade de imprensa considerada "relativamente boa".
Em meio à discussão do Projeto de Lei (PL) das Fake News, que visa regulamentar a difusão de informações nas redes sociais, o relatório traz um panorama das perspectivas para a prática do jornalismo no Brasil.
Segundo o diretor do escritório América Latina da RSF, Artur Romeu, a melhora das condições no país tem a ver com a expectativa sobre as ações do novo governo Luiz Inácio Lula da Silva do que com melhoras efetivas que já ocorram no exercício da profissão.
"É um otimismo em relação a um retorno da normalidade das relações entre governo e imprensa a partir do fim do mandato de Bolsonaro, que teve como marca registrada ser um governo associado à promoção da desinformação, da violência nas redes contra a imprensa e a uma tentativa sistemática de descredibilizar, difamar e gerar desconfiança sobre o trabalho da imprensa no Brasil", afirma Romeu.
No ano passado, a RSF contabilizou três assassinatos de jornalistas no país – o blogueiro Givanildo Oliveira, o correspondente Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira, que estava atuando como apoio ao trabalho jornalístico na ocasião.
Segundo Romeu, se fosse considerado apenas o quesito segurança (o ranking também contabiliza critérios políticos, sociais, econômicos, regulatórios), o Brasil cairia para a 149ª posição do ranking mundial.
O diretor da RSF explica que a avaliação do ranking geral, que é feita por meio de questionários com especialistas da área, ocorreu entre novembro e fevereiro, já com o resultado das eleições presidenciais definido.
"Vemos essa alta [no ranking] mais como uma expectativa de melhora do que o que de fato aconteceu", diz ele, acrescentando que o governo atual "tenta criar uma espécie de ruptura, na tentativa de marcar uma posição, uma diferença ‘civilizatória'".
No último dia 28 de abril, a Repórteres Sem Fronteiras publicou um estudo de caso sobre o Brasil intitulado O jornalismo frente às redes de ódio no Brasil, que faz um apanhado dos ataques feitos por usuários do Twitter a profissionais da imprensa entre agosto e novembro de 2022, durante a campanha eleitoral que resultou na vitória de Lula para a Presidência.
De acordo com a publicação, feita em conjunto com o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Labic/Ufes), foram registradas mais de 3,3 milhões de mensagens de ofensa e intimidação contra jornalistas e veículos de comunicação – uma a cada três segundos.
O estudo também afirma que os ataques foram empreendidos principalmente por apoiadores de Bolsonaro, quando não pelo próprio ex-presidente de extrema direita, e tinham como alvo majoritário mulheres jornalistas.
Ainda segundo a própria RSF, essas práticas identificadas no Brasil estão dentro de uma tendência global, destacada pela organização no ranking mundial deste ano como "indústria do simulacro" ou mesmo "indústria da desinformação".
"Vemos políticos e governos mobilizando a desinformação para conseguir suas próprias narrativas e tendo uma maior capacidade de controlar a agenda pública e escapar ao exercício do controle social do poder que exerce o jornalismo", pontua o diretor da RSF, que vê na atual discussão sobre o PL das Fake News uma oportunidade de enfrentar o "caos informacional" da desinformação e da violência política e de gênero.
"Achar que vai resolver o problema é ingenuidade, mas o projeto de lei tende a contribuir com um marco regulatório mais positivo para um ambiente mais saudável para o exercício do jornalismo", complementa.
Para o professor titular da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e jornalista Eugênio Bucci, mesmo que o governo Bolsonaro tenha diretamente tomado parte na propagação de desinformação e no estímulo aos ataques de ódio à imprensa, os danos não são irreversíveis.
"Tivemos perdas, é evidente. Mas são perdas que podem ser superadas, e existe uma abertura, uma brecha pela qual podemos restabelecer o exercício da liberdade de expressão, da organização das redações", analisa.
"É claro que, se o poder democrático perder tempo e não tiver clareza, tudo isso será mais difícil. Mas a brecha, a abertura histórica para isso está aí", afirma Bucci.
Em discussão na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 2630/2020, mais conhecido como PL das Fake News, estava marcado para ir a plenário nesta terça-feira, mas foi retirado da pauta após pedido do relator, Orlando Silva (PCdoB-SP), para que haja mais tempo para discussões. O texto visa regulamentar as big techs, responsáveis pelas redes sociais, para que haja maior transparência de moderação e controle de envio de fake news e mensagens de ódio.
Professor de Teoria da Comunicação e de Jornalismo, Direito e Liberdade da Escola Superior de Publicidade e Marketing (ESPM), Ricardo Gandour diz que a eclosão das mídias sociais mudou o paradigma da divulgação de informações, antes monopolizado pelos veículos de imprensa, que colocavam um filtro antes da publicação de uma notícia.
"O ato de publicar se tornou algo quase que impensado por muitas pessoas. Hoje, publicar algo é muito fácil, a barreira de entrada para as publicações caiu a zero", aponta.
Apesar dos ataques nos últimos tempos a jornalistas, a liberdade de expressão de imprensa hoje é plena, considera Gandour. Para o especialista, no entanto, essa liberdade não significa levar a público informações não checadas, já que indivíduos têm alcances comparáveis aos de veículos analógicos.
"A palavra regulação pode soar forte ou complicada, mas é preciso alguma instância de governança mais adequada. As big techs que possibilitam essa aceleração da disseminação de informações têm que assumir um papel mais ativo, de governança editorial. Elas têm que se assumir como empresas de mídia", analisa.
De acordo com Geane Alzamora, professora de Comunicação Social da UFMG, a liberdade de expressão, se for trabalhada sem responsabilidade, pode desembocar em discurso de ódio. Segundo ela, no entanto, a polarização dos embates políticos nos últimos anos tem sido utilizada pelas big techs como modelo de negócio.
"Quanto maior for a polarização, maior a atividade comunicacional gerada. Como isso é um negócio, não é imputado a uma responsabilização daquilo que é veiculado", diz ela. "As plataformas têm responsabilidade social, têm deveres. Elas têm que prestar contas disso."
Tanto Alzamora, da UFMG, quanto Eugênio Bucci, da USP, concordam que é preciso uma maior transparência quanto aos algoritmos utilizados pelas mídias sociais, para que se saiba qual tipo de conteúdo é priorizado para visualização de usuários específicos.
Como lembra Bucci, o debate está sendo feito de forma global. Na União Europeia, os conglomerados deverão fornecer a pesquisadores e autoridades, por exemplo, o acesso a algoritmos, além de passar por auditorias.
"O problema dos algoritmos, e que requer dramaticamente regulamentação e regulação, é que eles são opacos. A opinião pública, a autoridade pública, o Estado Democrático, não sabem como eles funcionam e como eles distribuem certos discursos e inibem outros. Que juízo de valor automatizado está em marcha hoje no debate público?", questiona o pesquisador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário