A lei em vigor estipula que o garimpeiro que vende ouro a uma empresa preencha, ele mesmo, uma nota fiscal em papel indicando o local de onde o metal foi extraído. Além disso, segundo a norma é presumida a boa-fé do vendedor, isentando o comprador da necessidade de checar a origem do ouro ou da responsabilidade por eventuais declarações falsas.
Como o Brasil não tem um sistema eficiente de rastreabilidade do ouro, se a Polícia Federal (PF) recebe alguma denúncia ou suspeita de fraude, precisa checar uma a uma as informações indicadas nas notas fiscais e as lavras de onde o ouro supostamente foi retirado – uma investigação difícil de produzir resultado.
Por esse motivo, alguns especialistas ouvidos pela DW afirmam que melhorar o rastreio na comercialização de ouro no Brasil seria, no longo prazo, até mais importante do que impedir a entrada de garimpeiros nas reservas indígenas, como vem sendo feito em caráter emergencial na Terra Indígena (TI) Yanomami.
Atualmente, o garimpeiro leva o ouro que extraiu a uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), que são empresas autorizadas pelo Banco Central e pela Receita Federal a comprar o metal. Ele indica então na nota fiscal o local de onde o ouro foi extraído, a chamada Permissão de Lavra Garimpeira (PLG).
As lavras garimpeiras são autorizadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM) a pessoas físicas, com 50 hectares, e jurídicas, com 1.000 hectares. Em ambos os casos, é necessário obter licença ambiental do órgão onde a lavra está situada e um descritivo técnico de como ela será explorada, assinada por um geólogo.
Na teoria, a lavra garimpeira serve para identificar a origem do ouro. Na prática, sua existência no formato atual serve, em muitos casos, para mascarar o metal obtido ilegalmente. É o que se convencionou chamar de "garimpo fantasma", termo cunhado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em um estudo feito em parceria com o Ministério Público Federal e divulgado em agosto de 2020.
Por meio de imagens de satélite, os pesquisadores cruzaram a origem declarada do ouro com a geolocalização das lavras garimpeiras. Eles descobriram que muitas lavras, onde deveria haver extração do metal, só existia mata nativa, sem qualquer intervenção humana. Assim, os especialistas entendem que aquela área serviu para "legalizar" ouro extraído irregularmente – de uma reserva indígena, por exemplo.
O esquema revelado pelos pesquisadores em parceria com o MPF mostrou que, de 2019 a 2020, 6,3 toneladas de ouro produzidas no país vieram de lavras sem garimpo, com movimentação aproximada de R$ 1,2 bilhão. Vender ouro cuja origem é fraudada pode ser enquadrado como crime de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica.
No momento de vender o ouro para uma DTVM, o garimpeiro escreve na nota fiscal seus dados pessoais, a quantidade e a origem do metal. "É uma autodeclaração. Ele não vai dizer que retirou ouro da Terra Indígena Yanomami, mas vai colocar a identificação de uma lavra garimpeira qualquer", afirma Larissa Rodrigues, gerente do Instituto Escolhas, organização da sociedade civil que desenvolve estudos e análises econômicas para o desenvolvimento sustentável.
Segundo um levantamento feito pela organização com base em 40 mil registros de comercialização do metal, cerca de 229 toneladas de ouro vendidas no país de 2015 a 2020 tinham indícios de irregularidades. "Quem compra esse ouro, a DTVM, se resguarda baseada na lei que está em vigor. Por isso, é muito difícil responsabilizar as pessoas que estão cometendo ilegalidades. É importante que nós possamos melhorar a legislação rapidamente", diz.
Em agosto do ano passado, um projeto de lei apresentado pelas então deputadas federais Joênia Wapichana (Rede-RR), atual presidente da Funai, e Vivi Reis (PSOL/PA) propôs endurecer as regras sobre venda e compra de ouro e ampliar sua rastreabilidade. Esse texto tem apoio da Receita Federal, do Banco Central e da ANM, e é avaliado pelo governo federal para ser possivelmente editado como medida provisória.
"Essa facilidade com que o ouro ilegal entra no mercado formal estimula as invasões em terras indígenas e das unidades de conservação. Mudar a legislação, mas não só isso, vai inibir a presença dos criminosos não só na Terra Indígena Yanomami, mas em outras regiões, como no Pará", afirma Rodrigues.
Gustavo Geiser, perito da Polícia Federal (PF) em Santarém, no Pará, afirma que esse projeto de lei tem um texto "maduro" e com boas proposições, e que se o governo transformá-lo em uma medida provisória será "algo a se comemorar".
A região de atuação de Geiser é crucial para entender o caminho do ouro ilegal no Brasil, sobretudo o extraído em Roraima, onde fica parte da Terra Indígena Yanomami afetada pelo garimpo. Em cidades paraenses, incluindo Santarém e Itaituba, onde também há intensa atividade garimpeira, o metal irregular é "legalizado" ao ser vendido em DTVMs amparadas pela boa-fé que resguarda dos compradores.
Como mostrou uma reportagem da agência independente Repórter Brasil, em junho de 2021, baseada em inquéritos da PF, o ouro extraído da Terra Indígena Yanomami estava sendo comercializado nas lojas F'D Gold e Ourominas, ambas em Itaituba.
As duas empresas estão sendo investigadas pela Justiça brasileira, mas negam qualquer irregularidade. "Essa é uma circulação que nós investigamos. Há muito ouro ilegal e legal circulando aqui. Há uma relação logística nesse sentido. O mesmo grupo que circula em Roraima, circula no Pará também", diz Geiser.
Para ele, parte do problema da circulação do ouro ilegal poderia ser resolvida com a tecnologia. "O ponto central é a possibilidade de ter um banco de dados. O ouro que é comprado no Brasil não é registrado. Nós precisamos ter a tecnologia a nosso favor", diz.
Rodrigues, do Instituto Escolhas, corrobora. "É preciso haver um rastreio capaz que demonstre esse fluxo desde a extração. Uma possibilidade é a nota fiscal eletrônica, mas há outras alternativas", diz. Ela cita como exemplo a utilização de registros similares aos de blockchain, capaz de integrar os dados e informações dos processos minerários e dos fluxos de produção, e a implementação de cadastro digital de todas as pessoas físicas e jurídicas aptas a movimentar e comercializar ouro.
Na PF, Geiser chama a atenção para o programa Ouro Alvo, que busca criar um acervo com partículas de ouro do Brasil e identificar irregularidades. De 2019 a junho de 2022, a PF apreendeu 733 quilos do metal em operações no país. "O ouro muda de acordo com a região do país. A intenção é para seguir mapeando as características do ouro e coibir ilegalidades", diz.
Apesar de estarem amparados pela lei, Rodrigues afirma que compradores nacionais e internacionais precisam exigir de seus fornecedores mais indicativos de que o ouro vendido não tem origem ilegal. Ela ressalta que pelo menos 50% do metal negociado pelo Brasil tem sangue indígena ou está relacionado ao desmatamento.
Nos últimos meses, a PF tem tentado rastrear o caminho do ouro rumo à Europa. Em outubro de 2021, a Repórter Brasil mostrou que a BP Trading, principal exportadora de ouro do país, tinha negócios com empresas nacionais investigadas por aquisição do metal oriundo de terras indígenas. A BP Trading afirmou na época em nota que "mantém rigorosos controles quanto à origem do mineral adquirido de seus fornecedores" e que é "condição inafastável para a realização de suas operações que o minério esteja acompanhado da devida documentação pertinente exigida pela legislação em vigor".
"Praticamente todo o ouro do Brasil é exportado para grandes economias, como Canadá, Suíça, Reino Unido [e outras na] Europa. Nós sabemos que não há um certificado de pureza ou algo similar, mas essas empresas internacionais precisam pressionar por algo nesse sentido. E, se houver desconfiança quanto à procedência, não comprar", afirma Rodrigues.
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