A questão é que o sectarismo bolsonarista impede a reflexão sobre a trajetória passada e recente do país, destrói as instituições e enfraquece o sentimento de pertencimento nacional. Para sair dessa enrascada, o Brasil só vai ter um futuro melhor se incorporar mais grupos em sua governança, estabelecendo diálogo entre eles e criando um novo equilíbrio político.
Sair da situação sectária e sem diálogo em que estamos é fundamental para reconstruirmos as instituições políticas e as políticas públicas atingidas por Bolsonaro. Há uma longa lista de tarefas. Em primeiro lugar, setores governamentais foram, em maior ou menor grau, desmontados.
Esses são os casos do Sistema Único de Saúde (SUS), da política educacional, da longa tradição diplomática, da burocracia e da legislação ambientais, da área de cultura, da proteção das comunidades indígenas, dos serviços e programas de assistência social, dos programas habitacionais, do embrionário modelo do Sistema Único de Segurança Pública e das ações no campo dos direitos humanos. Quase todo o Estado brasileiro sofreu um processo de deterioração institucional.
Em cada uma dessas políticas públicas será necessário apaziguar o conflito gerado pelo bolsonarismo, retomar o diálogo com os atores estratégicos, trazer de volta o que havia de bom e corrigir o que precisa se adequar às novas demandas do século XXI. De todo modo, o objetivo é sair da lógica das guerras culturais e estruturar os programas governamentais de forma profissional, baseando-se em evidências e no expertise de técnicos governamentais e especialistas que trabalham há anos com o assunto.
Isso não quer dizer que as políticas públicas sejam marcadas apenas por consensos. Há divergências e um leque de alternativas para resolver problemas públicos relevantes. Por esta razão será necessário reconstruir o Estado por meio do diálogo e adotando como mantra a noção de equilíbrio, que significa aqui fazer mudanças incrementais que não levem a um jogo de soma-zero no qual o “vencedor leva tudo”.
A reconstrução do país passa também pela recuperação de instituições fundamentais à democracia brasileira. O federalismo foi uma das estruturas centrais do Estado brasileiro mais atingidas pelo autoritarismo bolsonarista. É preciso voltar a um modelo intergovernamental mais cooperativo, com diálogo, atuação conjunta e respeito às autonomias subnacionais. Alianças com governadores e prefeitos vão ser fundamentais para colocar novamente nos trilhos e aperfeiçoar as políticas de saúde, assistência, educação e meio ambiente.
Ademais, é fundamental que haja contrapontos ao governo federal, pois a Federação é um dos contrapesos democráticos da República, de maneira que o presidente deverá procurar um equilíbrio federativo frente às visões e posições regionais.
Trazer de volta a independência do comando do Ministério Público Federal é outra tarefa fundamental para o próximo quadriênio. Se é verdade que o MPF cometeu alguns abusos nos últimos anos, mais fortemente na gestão de Rodrigo Janot, e que existem ações corporativas da instituição que precisam ter maior accountability, também é correto dizer que não é possível que o Procurador Geral da República seja um advogado de defesa do presidente - para isso já há a AGU. Novamente a palavra de ordem é equilíbrio, com o concomitante fortalecimento do controle e da responsabilidade.
As relações do Executivo com o Supremo Tribunal Federal nunca estiveram tão deterioradas. Obviamente que o modelo decisório do STF precisa ser aperfeiçoado, aumentando a quantidade e a celeridade das decisões colegiadas, dando mais segurança jurídica e protegendo os próprios ministros da crítica mais destemperada sobre suas decisões.
Independentemente disso, a afronta autoritária de Bolsonaro contra a Justiça é perigosíssima e deixou um legado maldito: há hoje mais apoio no Congresso para se aprovar uma emenda constitucional que aumenta o número de ministros de 11 para 15 vagas. Essa ampliação seria a antessala para um regime mais autocrático caso haja a reeleição. E mesmo se outra candidatura for vencedora, uma alteração dessa magnitude é uma distorção institucional. A sociedade tem de se posicionar contra essa medida.
O presidencialismo de coalizão é mais um dos abatidos pelas ações bolsonaristas. Num primeiro momento, o presidente não quis fazer nenhuma negociação contra o Congresso Nacional, adotando uma visão antipolítica (e autoritária) quase ingênua, que se transformou em ilusão quando percebeu que sofreria um impeachment se não tivesse apoio parlamentar. Daí em diante, Bolsonaro fez um pacto macabro com o Centrão baseado em dois elementos perversos para a vida republicana do país.
O primeiro foi a entrega de uma quantia inédita de recursos diretos aos parlamentares via emendas, parte delas referentes ao Orçamento secreto, cujo valor é de quase R$ 20 bilhões ao ano. O resultado disso foi, de um lado, a destruição institucional do relacionamento entre essas verbas e as políticas públicas, uma vez que uma enorme quantidade de dinheiro foi extremamente pulverizada e passa por fora dos programas governamentais estruturados nacionalmente, tornando mais irracional o gasto público. Além disso, por outro lado, a transparência governamental das despesas foi fortemente reduzida, fazendo com que muitos prefeitos digam que nunca houve tanta corrupção em transferências federais como há agora com o Orçamento secreto.
Para evitar o impeachment, Bolsonaro foi parceiro no aumento de poder de agenda do presidente da Câmara. Arthur Lira está atropelando os ritos legislativos mais do que Eduardo Cunha tinha feito, o que parecia algo impossível de ocorrer. Claro que esse poderio serve a ambos: Lira aprova o que quer para criar aliados de longo prazo, enquanto adicionalmente passa medidas que interessam ao Executivo, a fim de garantir a reeleição do presidente e dos parlamentares aliados. Foi dessa maneira que emenda constitucional foi aprovada em duas semanas, que o princípio republicano sobre medidas que podem ser feitas pelo governo num período eleitoral foi dinamitado. Esta é a segunda forma bolsonarista de implodir as bases democráticas do presidencialismo de coalizão: transformar o jogo legislativo num atropelo de normas básicas republicanas.
O Brasil tende a sair muito dividido dessas eleições gerais. A Câmara Federal provavelmente terá uma composição majoritária de centro-direita, mas com maior peso da centro-esquerda do que na legislatura atual e com alguns partidos centristas dispostos a negociar para contrabalançar o poder do Centrão comandado por Arthur Lira. Não haverá nenhum presidente eleito com maioria imediata no Senado e aqui a negociação será ainda mais complexa.
No plano federativo, se um dos líderes da pesquisa vencer as eleições, seja Lula ou Bolsonaro, ele terá entre 12 e 15 governos estaduais eleitos por sua “oposição”. Seguir no roteiro bolsonarista de confrontar os estados - e muitas capitais - deverá produzir uma enorme dificuldade de governar o país.
O vencedor da eleição presidencial, quem quer que seja, terá uma sociedade extremamente dividida para governar. Não conseguirá melhorar a situação do país falando apenas para os seus eleitores. No caso dos líderes das pesquisas, ambos teriam governos muito atribulados se optarem pela sectarismo.
Seguindo esta linha, Bolsonaro seria candidato a repetir o que ocorreu com Dilma no segundo mandato, pois o Centrão atual (PP, PL e Republicanos) está preocupado em dominar as eleições municipais de 2024, e não segurará um presidente impopular e radical. Já Lula, se não ampliar rapidamente os apoios em direção ao centro e negociar sua agenda com vários grupos sociais, poderia ser vítima da instalação do semipresidencialismo.
A política do equilíbrio é a única forma de o novo presidente reconstruir o país depois do vendaval destruidor do atual período bolsonarista. Um bom exemplo inspirador para melhorar a governança do Brasil é o livro “A democracia equilibrista”, de Pedro Abramovay e Gabriela Lotta (Companhia das Letras). Nele, os autores mostram como o sucesso das políticas públicas depende muito da combinação entre os ditames da política e a visão dos especialistas. Ao combinar essas duas lógicas, os casos analisados pelo texto revelam como é preciso conciliar a legitimidade do voto e a da técnica, gerando diálogo e construção de consensos entre políticos e burocratas.
O argumento do livro segue tão bem a lógica da necessidade do equilíbrio que os prefaciadores são os ex-presidentes Fernando Henrique e Lula, que tanto competiram eleitoralmente. Se dois adversários podem concordar com o valor da compatibilização de posições diferentes, é porque chegou a hora de o país exigir do próximo governo temperança, parcimônia e muito diálogo. Fora desse esquadro, caminharemos para um novo século independente sem aprender com os fracassos mais recentes da nossa história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário