Para entender esse país anômalo, cada vez mais rico e mais pobre ao mesmo tempo, cujas irracionalidades econômicas, sociais e políticas são produzidas, apoiadas e estimuladas pelo próprio governo, é preciso compreender sua estranha e persistente formação.
Sua base histórica é o município. Desde os primeiros anos da Conquista, tornou-se ele a base da estrutura política brasileira e fundamento da superestrutura da administração pública, mesmo quando ela se desdobrou nos poderes das províncias, dos estados e da nação. Criou uma cultura política.
No início, o rei, isto é, o Estado, que nada tinha, concedia terras de seu domínio e privilégios à pequena casta dos “homens bons”, os puros de sangue e de fé, sua qualidade. Eles tinham a obrigação de cristianizar o gentio em troca de seu trabalho, os chamados índios administrados. Em troca de nada obtinham trabalho criador de riqueza.
O serviço da Conquista era remunerado com o direito de saquear os nativos e a natureza, tudo juridicamente regulamentado. Saquear o outro, os sem qualidade social, e ter a terra era um direito de conquista, legitimado simbolicamente pelo rei em troca de tributos porque tinha ele, da terra, o senhorio.
A acumulação de bens originários dessa situação alterou as condições sociais, econômicas e políticas da formação brasileira. Deu origem ao nosso subcapitalismo, que nunca chega a ser capitalismo propriamente dito.
No entanto, a forma arcaica e anticapitalista de reproduzir essa estrutura persistiu porque esse sistema criou a legitimidade das diferentes modalidades de saque. Saquear o que é bem público, como a terra, tornou-se um direito. Não é estranho que a criminalidade fundiária persista como fator anômalo de acumulação não capitalista de capital.
Não é acidental que ainda persista o trabalho escravo no Brasil e persistam formas antissociais de sobre-exploração do trabalho, no trabalho doméstico, no mundo rural e até na indústria. E que persista a grilagem de terras públicas que deveriam ser destinadas a um programa de reforma agrária e de desenvolvimento do agronegócio familiar.
Sobretudo que persista a invasão das terras indígenas, o comprometimento das condições de vida dos povos originários que, em consequência, redunda em genocídio continuado. Tudo isso é corrupção. A Constituição e as leis nos dizem isso.
É verdade que o conceito de corrupção nunca foi empregado para designar os diferentes e sucessivos atos desse processo, ao longo de nossa história, ou para designar seus autores como corruptos. Porque essa era a naturalidade dos fatos.
Os beneficiários do saque prestavam um serviço à Coroa, e muitos ainda acham que o prestam ao Estado ao desmatar e se apropriar da madeira, escravizar trabalhadores para abrir novas fazendas, sonegar impostos para aumentar sua taxa de lucro, “limpar” de índios as terras indígenas. Muitos corruptos de hoje ainda acham que prestam um serviço ao desenvolvimento do capitalismo.
Essa imensa subversão fundamenta a atrasada concepção de política praticada por políticos. Apoia-se nas duplicidades próprias da cultura política brasileira. Uma coisa é o que vem a ser corrupção para os políticos e a disputa eleitoral. O que pode ser visto e compreendido pelo povo e fica oculto no jogo de palavras e nos ardis da linguagem da dominação política.
Outra coisa é o que vem a ser corrupção na concepção do povo e do eleitorado. A corrupção dos políticos que eventualmente se possa a eles atribuir tem códigos e tradições próprias. É ela um sistema, um crime no centro de crimes conexos.
O que o homem comum tem dificuldade para perceber é que em países como o Brasil há ladrões honestos, isto é, os que são corruptos nos procedimentos que redundam em seu enriquecimento pessoal, de família ou de grupo de interesse econômico e político.
No geral, o corrupto é tão virtuosamente corrupto que cria, até cientifica e tecnicamente, o álibi de sua corrupção, a máscara de honesto e santo de que carece para fazer com que sua corrupção pareça o contrário do que é.
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