Desde 2016, o IBGE divulga uma série de estatísticas que, juntamente com a taxa de desemprego (11,6% no trimestre dezembro-fevereiro, equivalentes a 12,3 milhões de pessoas), ajuda a compreender as deficiências do mercado de trabalho contemporâneo. Uma delas é a subocupação por insuficiência de horas, formada por profissionais que trabalham menos de 40 horas semanais, têm tempo e gostariam de uma jornada maior — certamente, para ganhar mais. Essa forma de ocupação alcança muitos autônomos (notadamente os prestadores de serviços), empregados sem carteira assinada e aqueles submetidos ao contrato intermitente, novidade da reforma do governo Michel Temer/Henrique Meirelles.
Com as regras recém-anunciadas, Paulo Guedes e equipe permitem via acordo individual — ou seja, sem participação de sindicatos — a redução de 25% em jornada e salário de trabalhadores formais de todos os níveis de rendimento. E autoriza o corte de 50% e 70% de carga horária e remuneração de qualquer celetista que ganhe até três salários mínimos. Empurra, portanto, o com carteira para a subocupação. “Se evita demissão no curtíssimo prazo (90 dias), por outro lado reduz a renda, impacta o consumo das famílias e afeta até a capacidade de os informais ganharem dinheiro, porque boa parte deles atende os empregados formais”, analisa o economista Fabio Bentes, da Confederação Nacional do Comércio (CNC).
Bentes foi à Rais 2018 — última edição disponível da base de dados mais completa do emprego formal no país — e descobriu que 69% dos celetistas ganham até três mínimos. São 32 milhões num universo de 46 milhões de com carteira. Ou seja, sete em cada dez brasileiros formalmente contratados poderão ter jornada e salário reduzidos em até 70%, compensados com igual proporção do teto do seguro-desemprego (R$ 1.833), por decisão do empregador, sem intermediação do sindicato.
“É medida injustificável, porque reduz o papel das entidades de representação junto à categoria mais numerosa e com menor poder de barganha. A intenção parece ser preservar empresas menores, que costumam contratar trabalhadores de menor qualificação. Mas, no fundo, vai prejudicar também os empresários, porque reduzirá substancialmente a massa salarial e o consumo, num momento em que é necessário preservar o poder de compra para conter a recessão e ajudar na recuperação da atividade daqui a uns meses”, afirma Debora Freire Cardoso, professora-adjunta no Cedeplar/UFMG.
O mesmo governo que aderiu à proposta parlamentar de concessão de renda básica emergencial de R$ 600 por três meses para estender uma rede de proteção social aos informais aumenta a fragilidade de quem tem carteira assinada. A mesma medida provisória permite a suspensão do contrato de trabalho por dois meses com pagamento apenas do equivalente ao seguro desemprego.
A economista Monica de Bolle, da Universidade John Hopkins, defensora de políticas agressivas de transferência de renda em tempos de calamidade global, chama atenção para o efeito colateral negativo até na saúde pública. “Durante uma pandemia, cujo combate depende do isolamento social, o governo se arrisca a ver trabalhadores formais saindo às ruas para recompor, via mercado informal, o salário que vão perder. Essas medidas introduzem uma incerteza econômica brutal”, dispara.
A recomendação ao governo brasileiro são as medidas que vêm sendo anunciadas em outros países para blindar as economias durante a quarentena da Covid-19. Estados têm assumido a folha de pagamento, desonerado empresas e ofertado crédito barato e farto para que patrões e empregados hibernem e, passada a tempestade, recomecem de onde pararam. O custo a mais, garantem os especialistas, seria compensado pela queda menor do consumo das famílias e, adiante, com a recuperação mais rápida da atividade. O governo Jair Bolsonaro periga gastar muito sem colher os melhores resultados, porque desconhece, subestima ou despreza o papel do trabalho na engrenagem econômica.
Flávia Oliveira
Flávia Oliveira
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