A boa notícia é que a eleição acabou, desanuviando um pouco a poluição raivosa que pairava no ar e impedindo o prosseguimento das nefastas políticas e práticas protagonizadas pelo PT durante quatro mandatos consecutivos. A notícia ruim – ou mais ou menos ruim – é que as prioridades do governo Bolsonaro só agora começaram a ser de fato definidas.
Durante a campanha, como não podia deixar de ser, a única coisa séria levada aos ouvidos dos eleitores foi o imperativo do ajuste fiscal e, consequentemente, da reforma da Previdência. Falou-se também do indispensável combate ao crime, mas quanto a essa questão há um óbvio descasamento entre os quatro anos do mandato presidencial e os 20 anos ou mais de que necessitaremos para chegar a soluções sólidas e abrangentes. É, pois, perfeitamente razoável afirmar que a grande agenda do País – os grandes problemas que teremos de enfrentar no médio prazo – não deu o ar de sua graça.
O relativo otimismo que podemos sustentar está, pois, ancorado nos dramatis personae, quero dizer, na nomeação de Sergio Moro para um Ministério da Justiça expandido para incluir a magna questão da segurança pública e na equipe econômica, comandada por Paulo Guedes. Sobre Moro nada há a acrescentar; não fora sua firme atuação na Lava Jato, ainda teríamos apenas uma pálida ideia da dimensão da corrupção no Brasil. Paulo Guedes, diplomado por Chicago, pertence ao primeiro time dos economistas brasileiros e vem há muitos anos clamando por uma reforma liberal, o que no momento significa prioridade para o ajuste fiscal e alguma indicação clara no tocante à privatização.
No lado negativo da balança, penso que alguns membros do novo governo estão se precipitando sobre questões que no momento não requerem nenhum movimento de nossa parte, e que podem nos custar caro. O caso óbvio é a mudança de nossa embaixada em Israel para Jerusalém. Refletindo um pouco mais, o próprio presidente Jair Bolsonaro e o futuro ministro do Exterior concordarão que não devemos comprar brigas que não nos dizem respeito. O mesmo se deve dizer sobre um “alinhamento” mais estreito com os Estados Unidos na arena internacional. Salta aos olhos que a vocação brasileira é a de um global player, um protagonista global, papel para o qual contamos com todos os recursos necessários, desde logo uma base econômica diversificada e potencialmente robusta.
A área para a qual desejava chamar a atenção é, porém, a da educação, que avulta por larga margem sobre quase todas as outras. Ao ministro nomeado, Ricardo Vélez Rodríguez, por certo não faltam credenciais. É um sociólogo competente e um respeitado professor universitário. Não me consta que tenha em algum momento se concentrado sobre os problemas do sistema educacional brasileiro. Alguém poderá redarguir que nossas mazelas nessa área são óbvias, perceptíveis a olho nu. Eis aí uma noção equivocada. As mazelas – quero dizer os maus resultados do sistema – são de fato evidentes, mas a trama das causas e dos mecanismos que os engendram não o são. A vantagem, no caso, é que o dr. Vélez Rodríguez, com sua extensa experiência acadêmica, irá não só se debruçar sobre a matéria, mas ouvir muito e, por sorte, o Brasil dispõe de pelo menos uma dezena de especialistas de grande renome internacional. Se o ministro e meus eventuais leitores me permitem um palpite, direi que o fundamental é compreender a dimensão e a urgência da reforma necessária. Atrevo-me até a afirmar que “reforma” não é a palavra adequada. Na educação, precisamos é de uma verdadeira revolução, que abranja e chacoalhe de alto a baixo o atual o sistema em seus aspectos organizacionais e pedagógicos.
Em artigo publicado na semana passada neste jornal, intitulado O teatro principal, William Waack tocou num ponto sumamente importante: a necessidade de o novo governo não dispersar esforços. Concordo em número, gênero e grau. À parte a educação, à qual me referi no parágrafo anterior, o desafio a enfrentar é o ajuste fiscal, aí incluída a indispensável reforma da Previdência. Mas não vejo como concluir meu argumento sem me referir à questão política propriamente dita e, portanto, à reforma política que cedo ou tarde teremos de fazer. O quatriênio Bolsonaro terá de ser uma freada de arrumação, a reorganização da casa que o tsunami Dilma Rousseff tornou imperativa. Mas tenho a mais plena convicção de que o Brasil não atingirá a velocidade de que necessita no que tange ao crescimento econômico e à redistribuição da renda com o sistema político vigente.
Antigamente, quando a esquerda lia, pelo menos Marx ela lia, o que não deixava de ser uma base razoável. Dessa leitura ela extraía duas convicções passavelmente racionais. Primeiro, que a infraestrutura (ou seja, a base econômica) determinava a superestrutura (ou seja, as ideologias, as regras jurídicas, etc.). Segundo, a de que, de tempos em tempos, a infraestrutura (também chamada de “forças produtivas”) começava a ser tolhida, impedida de se expandir, pela superestrutura (também chamada de “relações de produção”). Enquanto tal restrição perdurasse, a sociedade acumularia tensões cada vez mais graves, que a certa altura resultariam num período de revolução social. Nessa visão, o sistema político da sociedade era de certa forma passivo, um espectador idiota que cedo ou tarde seria levado de roldão pela explosão das forças produtivas.
Qualquer que seja o mérito da tese de Marx em escala mundial, ao Brasil ela me parece decididamente inaplicável. Nossas forças produtivas estão há muito tolhidas por um sistema político sustentado por uma das piores combinações que a História inventou: o Estado patrimonialista, o famigerado “presidencialismo de coalizão” e o voraz corporativismo que permeia de alto a baixo a organização do poder nacional.
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