Jair Bolsonaro é essa espécie de técnico de futebol, ou melhor, presidente da República. É desde sempre um personagem controverso; foi um deputado beirando o folclórico e um candidato a quem as circunstâncias deram a vitória. Mesmo assim, venceu uma eleição improvável e fez a alegria de sua torcida quanto a felicidade de quem detestava seu adversário. Como o goleiro que faz milagres; fechou o gol e, na gíria do futebol antigo, garantiu o bicho.
Portanto, neste momento, tem crédito. Mas, é irresistível chamar Fernando Collor de Mello à memória. O ex-presidente praticou a maior intervenção no domínio econômico que se tem recordação e ainda assim, no dia seguinte à decretação de seu Plano (Collor), houve aceitação geral, em que pese os desespero de quem teve recursos sequestrados pelo governo. No Congresso Nacional, se disse "amém" ao tom imperial do então jovem presidente. O Plano Collor foi aprovado sem resistência e mesmo o Supremo Tribunal Federal se esquivou de julgar a inconstitucionalidade flagrante das medidas.
(Ao seu tempo, Dilma Rousseff teve igualmente momentos de glória: todos a cercavam, chamavam de presidenta, como preferia ser tratada, e apontavam elegância e sabedoria na resoluta (e suposta) faxina que realizava na base política que herdara de Lula)
É isso: no início de relacionamento, quase tudo é relevado e até o abuso é permitido. A popularidade inicial mistura-se à esperança e ambas se transformam em indulgência. Nesse período, o governante sente-se invulnerável. Sobretudo, o governante inexperiente. No auge de sua vaidade, tripudia adversários; com soberba, encara de peito aberto todos os interesses contrariados, sem precaução.
Abre, assim, múltiplas e simultâneas frentes de conflito, sem saber que seus passos são observados; seus erros, anotados e a soma dos ressentimentos que causou é colocada no módulo de espera, no freezer, para será descongelada em banho-maria, quando o tempo passar e a tolerância e a boa vontade se esvaírem. É, a tolerância é elástica, mas como barbante também arrebenta. O bom governo sabe disso e trata de não exceder limites.
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Jair Bolsonaro passa por seu momento de inebriação. Sua autossuficiência inocente é tão humana quanto errar também é. Vive o melhor momento de seu governo antes de inicia-lo, concretamente. Tudo é mais ou menos festa; depende de sua vontade e as reações ainda não se fazem sentir na força bruta como de fato são. Depois é que virá o temporal.
Naquilo em que não foi obrigado a delegar — como ocorreu na Economia (Paulo Guedes), Justiça (Sérgio Moro) e na Defesa (General Fernando Azevedo e Silva) —, não se fez de rogado e atendeu exclusivamente sua prole e aliados de primeira hora; não contemporizou com o Congresso e nem com a sociedade de um modo geral. Itamaraty, Meio Ambiente, Educação, Direitos Humanos, Secretaria de Governo, Secretaria-Geral e Secretaria de Comunicação foram preenchidos de acordo com seu exclusivo entendimento e compromissos com o grupo mais próximo.
Não se importou se as escolhas que fez podem ou não afetar o comércio e a imagem exterior do Brasil; o futuro da formação e da capacidade produtiva do país, direitos individuais e de grupos que expressam a sociedade moderna e complexa de relações de gênero e orientação sexual secularizadas, relações com o Congresso Nacional, com a mídia e a imprensa tradicional.
Não se pode dizer que tenha enganado quem quer que fosse; o presidente eleito faz ou indica que fará o que prometeu na campanha eleitoral e ao longo de sua vida política. Mesmo assim, age com determinação desabrida, de modo áspero e rude; pouco prudente, às vezes pouco convincente. Nesse clima, constroem-se por si as armadilhas de logo mais à frente.
A princípio, o caso do ex-assessor do filho de Bolsonaro, que segundo o Coaf teria movimentação atípica de recursos, depositando valores — ditos, agora irrisórios — na conta da futura primeira-dama, é o "amendoin" do momento. Uma bobagem, quando tudo ainda é esperança e há crédito. Mas, pode ser também veneno guardado no freezer, esperando que Dalila do tempo corte os cabelos de Sansão.
Isto se deu com o cheque que pagou o Fiat Elba para o uso da família Collor e com as tais "pedaladas" de Dilma Rousseff. Pode não ser nada, mas pode vir a ser alguma coisa a se somar com outras tantas acumuladas no processo, transformada em tormenta no momento mais frio dos invernos que invariavelmente chegam para qualquer governo.
Como técnicos de futebol que perdem jogos ganhos, por pura teimosia ou goleiros que levam frangos por displicência, o crédito político se esvai em coisas assim: tropicões de hoje que serão cobrados como verdadeiros tombos, amanhã. O "timing" do Congresso Nacional é distinto do tempo do Poder Executivo: ao contrário da urgência de um governo na crise, os adversários podem esperar; cantar "não se afobe não, nada é pra já". No freezer, o erro político aguarda na fila o banho-maria; depois é que germina desastre.
Carlos Melo
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