A existência da escravidão moderna no Brasil foi reconhecida formalmente apenas em 1995, na gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), quando foi formado o primeiro Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado. Nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), medidas anteriores foram mantidas e aprimoradas, e novas iniciativas foram criadas, a exemplo da lista-suja do trabalho escravo. Inaugurada em 2003, ela expõe ao público as empresas responsáveis pela escravidão moderna e ainda as impede de obter empréstimos de bancos públicos.
Neste período, cerca de 50 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão. Em geral, as vítimas têm um perfil de vulnerabilidade: são homens (95%) jovens, de baixa escolaridade (33% são analfabetos, 39% só estudaram até o quinto ano) e moradores de bolsões de pobreza, principalmente do Nordeste e do Norte, mas também do norte de Minas Gerais, por exemplo, que migram para grandes centros urbanos ou fronteiras agrícolas em busca de emprego.
Mais da metade dos casos (52%) foram detectados na Amazônia, região de difícil acesso e de fiscalização custosa, onde muitos crimes se entrelaçam. Mas há resgates em todo o país. Setores do agronegócio, em especial a pecuária, se notabilizaram por concentrar a maior parte dos casos, mas atividades urbanas, como a construção civil e a indústria têxtil, também são marcadas por esse tipo de abuso.
Os flagrantes só foram possíveis graças a uma atuação conjunta entre Estado, ONGs e o Ministério Público do Trabalho, que conseguiram fazer do país uma referência no combate ao trabalho escravo. Recentemente, no entanto, a imagem do Brasil foi abalada.
"Estávamos em uma curva ascendente de controle do problema, tanto pela interpretação correta do que constitui trabalho escravo quanto pela construção, nos últimos 23 anos, de um arcabouço de políticas públicas bastante avançado que baseia o trabalho de instituições e da sociedade civil", afirma o frade dominicano-francês Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma das instituições líderes contra o trabalho escravo. "Mas nos últimos dois ou três anos estamos diante de uma tentativa acentuada de desconstruir tudo isso."
As preocupações de Plassat têm como foco duas ações do governo Michel Temer (MDB). Ao assumir a Presidência, em agosto de 2016, Temer estabeleceu como prioridade uma reforma trabalhista que tinha como base a legalização da terceirização em todas as atividades de uma empresa. Aprovada em agosto de 2017, a reforma causou preocupação nas organizações que lutam contra a escravidão moderna, pois, conforme levantamento da ONG Repórter Brasil, dedicada a combater a prática, 90% dos trabalhadores resgatados de situações análogas à escravidão são terceirizados.
Dois meses depois, em outubro de 2017, o governo Temer foi atrás de dois dos principais pilares do combate à escravidão moderna – a definição do que é trabalho escravo e a lista-suja dos empregadores. Em uma portaria assinada pelo então ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, o governo determinava que o trabalho análogo à escravidão só seria caracterizado se houvesse flagrante de privação de liberdade, e não uma de quatro condições previstas na definição anterior: jornada exaustiva, servidão por dívida, trabalho forçado e condições degradantes no ambiente laboral.
No que diz respeito à lista-suja, o documento atrelava a divulgação dos nomes das empresas flagradas a uma decisão expressa do ministro do Trabalho, esvaziando a área técnica da pasta, antes responsável pela lista. A portaria causou choque dentro e fora do Brasil e acabou revertida por decisões judiciais.
Além do conteúdo da portaria, chamou a atenção o momento de sua publicação – uma semana antes de a Câmara dos Deputados votar a denúncia contra Temer por organização criminosa e obstrução de justiça. Havia poucas dúvidas de que a medida era uma entre várias tentativas de obter apoio de deputados para salvar o mandato presidencial.
"Houve uma clara articulação dos setores mais atrasados do país, em aliança com interesses espúrios, para manter no poder um grupo sem representatividade política”, diz o deputado estadual por São Paulo Carlos Bezerra (PSDB), autor de uma lei que bane do Estado, por dez anos, empresas condenadas por utilizarem trabalho escravo. No dia da votação, a bancada ruralista, sozinha, deu 55% dos votos responsáveis por salvar Temer.
Parte dos representantes da bancada ruralista e das indústrias de construção e têxteis estava na base do governo Dilma Rousseff (PT), mas passaram a ter uma atuação mais arrojada quando ela foi derrubada. "Temer entregou como num prato as demandas desses setores”, afirma Plassat.
Nenhum comentário:
Postar um comentário