Sobre o script não precisamos alongar-nos muito. O governo Temer conseguiu evitar o desastre iminente que se delineou durante o segundo mandato de Dilma Rousseff e chegou a aprovar alguns projetos importantes no Congresso Nacional. Mas ao entrarmos no ano eleitoral as coisas tornaram-se mais difíceis, o tsunami da corrupção pôs toda a classe política em xeque e as relações do Executivo com o Legislativo tornaram-se escorregadias, para dizer o mínimo. Não passamos nem a reforma da Previdência, com o que a questão fiscal continuará a pairar sobre o País como uma espada de Dâmocles, premonição de um possível retrocesso.
Mas a variável-chave, como comecei a dizer, é o elenco. Temos aí uma dúzia e meia de candidatos ou quase candidatos, todos por enquanto muito débeis, nenhum que arrebate os corações e as mentes. O aspecto mais curioso – para não dizer patético – é a óptica pela qual os analistas e observadores tentam decifrar esse caleidoscópio. A maioria se contorce para tentar encaixá-los na dicotomia esquerda x direita. Poucos se dão conta de que esse esquema já deu o que tinha para dar. Os augures (adivinhos) da Antiguidade provavelmente chegariam mais perto da realidade, pois se contentavam em examinar o voo de certas aves ou as entranhas de certos animais, e aí diziam qualquer coisa, o que lhes viesse à mente. Os príncipes ficavam contentes e iam ou não à guerra conforme a “previsão” que lhes era passada.
Os termos esquerda e direita, como se recorda, provêm da Revolução Francesa; surgiram como indicativos das posições ocupadas na Assembleia Nacional pelos jacobinos e girondinos. Assumiram, desde então, pelo mundo inteiro, inúmeros significados, adaptando-se aos interesses políticos das forças em confronto em cada país. Tentar entendê-los por meio de uma análise rigorosa de seus conteúdos é perda de tempo, pois eles variam no tempo e de país para país. Funcionam como totens tribais. Esquerda é o totem dos que se arrogam uma maior sensibilidade social, um conhecimento mais preciso dos meios necessários para aliviar o sofrimento dos pobres e o caminho que leva ao paraíso terrestre – a “sociedade sem classes”. Direita são aqueles que, arrogando-se também os dois primeiros pontos, descartam o terceiro como uma fantasia (ou uma falcatrua intelectual) e conferem importância decisiva à estabilidade social, à segurança, à lei e à ordem. Desde o advento das pesquisas de opinião por amostragem, após a 2.ª Guerra Mundial, inúmeros levantamentos foram feitos sobre essa questão. Em dezenas de países, instados a informar o que entendiam pelos termos esquerda e direita, a maioria dos eleitores nem sequer conseguia oferecer definições genéricas como as que enunciei acima. Tanto nos países mais escolarizados do norte da Europa quanto naqueles, como o Brasil, onde a maioria é quase analfabeta, o porcentual que conseguia tal proeza sempre ficou entre 15% e 20%.
Não creio que algum pesquisador sério conteste essa afirmação. Portanto, na eleição de outubro, é fácil adivinhar que pelo menos uma dúzia dos candidatos tratará simplesmente de encontrar um “nicho” discursivo desocupado onde se possam abrigar: à direita, à esquerda, acima ou abaixo, como disse certa vez o prefeito Kassab ao lançar um novo partido, o PSD.
Considerando, pois, a anemia analítica da dicotomia esquerda x direita, haverá a esta altura algo útil que possamos dizer sobre a eleição e seus efeitos econômicos putativos? Creio que sim. Ao menos por ora, penso que o problema não é o perfil – de esquerda, centro ou direita – dos candidatos mais cotados, mas a dinâmica que vai predominar na campanha: polarização entre um “esquerdista” e um “direitista” exaltados ou uma tendência “centrista”, com a maioria do eleitorado convergindo para um ou mais candidatos de perfil moderado.
A contragosto, dado o raciocínio que venho de expor, tento identificar alguns nomes. O mais fácil é o totem esquerdista, ou seja, o candidato ungido por Lula, admitindo-se que este conseguirá transferir para ele uma grande quantidade de votos. Fala-se em Fernando Haddad, mas aqui surge uma indagação. Haddad não tem perfil incendiário. Nesse cenário, teremos, então, os Stédiles e os Rainhas da vida, que já falam abertamente em “guerra civil”, e talvez o próprio Lula, pressionando um candidato de índole centrista a assumir um papel radical. No polo oposto, com os dados hoje disponíveis, temos Bolsonaro – e outra indagação. Oriundo das Forças Armadas, Bolsonaro presumivelmente atrairá sobretudo eleitores aflitos com a segurança e quiçá adeptos de um modelo econômico nacional-estatizante; mas Paulo Guedes, o economista incumbido de elaborar seu programa de governo, abomina tal modelo.
Dada a manifesta inconsistência dos extremos, é plausível especular que o “centro”, por ora anêmico, venha a se fortalecer. Nesse nicho, o nome óbvio é Geraldo Alckmin, que tem a seu favor uma longa experiência de governo no Estado de São Paulo e um temperamento afável. O problema, além dos modestos índices que ostenta nas pesquisas, é que a recuperação econômica dificilmente atingirá um ritmo suficiente para reverter a sede de sangue que se disseminou em grande parcela da sociedade.
A título de conclusão, devemos, pois, voltar à segunda das duas proposições que enunciei no início. Dependendo da dinâmica eleitoral e do presidente eleito, a situação do País poderá melhorar um pouco, ou piorar muito. Chato é pensar que esse “piorar muito” poderá ser quase uma recaída na era das cavernas.
Dependendo das eleições, a situação do País pode melhorar um pouco ou piorar muito.
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