Somos, assim, infatigáveis buscadores de ancoras e bússolas, de leis e juízes, pois quem nos embala são circunstâncias dadas por situações e costumes. Nossa natureza, como diz Marshall Sahlins, é a cultura. Somos feitos pelo arbitrário de nossas línguas que obrigam a falar e a ouvir de modo particular e a seguir categorias gramaticais de modo inconsciente.
Vivemos em mundos diferenciados que podem ou não excluir outras humanidades ou incluir todos os seres vivos como nossos semelhantes. Graças à linguagem articulada, vivemos numa roupagem espiritual.
Na velha fórmula: nós fazemos a nós mesmos e, em consequência, somos feitos pelo que fazemos – porque não há nada mais irônico do que criar leis e deuses e, ato contínuo, rejeitá-los; ou por eles morrer ou matar.
Marx falava em fetichismo da mercadoria. Os antropólogos falam no animismo que “anima” o mundo, atribuindo intenção a certas coisas. A imagem de barro torna-se milagrosa; a aliança de ouro bloqueia certas relações. As nossas arbitrárias reinvenções e nós mesmos demandam tribunais, árbitros, mediadores, representantes e juízes.
*
Os professores de Direito Constitucional – dizem que a “Constituição” constitui a sociedade. O quadro se complica quando, ao reverso, os antropólogos afirmam que as constituições é que são instituídas pelas sociedades. Por isso, elas reafirmam seus ideais, tabus e privilégios. Ademais, as “constituições” surgiram quando se inventou a escrita. Foi a capacidade de fixar normas em pedra ou em bronze como dizia Rousseau, que permitiu a sua leitura como normas eternas, impessoais, divinas e, nas democracias, imparciais. Sujeitas a divergências e interpretações, mas acima – eis o ponto – de sua destruição. Tornar a lei neutra ou nela criar um espaço intermediário de espera é nelas abrir o espaço do purgatório. Um ligar para onde são enviados cidadãos especiais cujos julgamentos são embargados ou protelados.
*
A lei escrita ou “constituída”, não resolve tudo, mas espelha o “espírito” do povo que a engendrou. A maior prova disso é a índole do nosso regime legal nos seus variados mecanismos destinados a salvar as pessoas especiais do inferno dos cárceres, colocando-as nos purgatórios da ausência de julgamento. Aliás, nossos julgamentos – quando terminam – não seguem a norma do culpado ou inocente, mas concedem infinitas recorrências (ou indulgências) aos pacientes privilegiados. Seguem o modelo purgatorial e eventualmente prescrevem crimes. Sobretudo os chamados delitos de “colarinho branco”, um termo que denuncia a notável diferença para com os “crimes dos que não usam gravata”. Ou seja, o delito dos comuns – esses que não roubam o Estado, mas as galinhas dos vizinhos.
*
Hoje, tudo isso surge com clareza. Quanto mais pobre, mais inferno; quanto mais importante, mais céu ou purgatório. E, com o purgatório, as indulgências nas quais o argumento político é usado contra o jurídico. Isso para não falar dos recursos e embargos que a sociedade já não pode mais tolerar. Penso que o purgatório é o espaço social inconsciente e dominante no fundo da cultura legalista nacional. É ele que sustenta o discurso da inocência, da vitimização e da injustiça.
Imaginar, pois, que o nosso direito e tudo o que vem com ele não sofreu as influências da cosmologia ibérica – forjada pelo limbo, pela Virgem Maria, Mãe de Deus; pela Santíssima Trindade, pelos milagres e perdões misericordiosos que transformam pecadores em santos e mártires – é uma ingenuidade sociológica. Mas é assim que tem andado a barca e, por isso, Deus – dizíamos – é brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário