sábado, 17 de março de 2018

Dramas voláteis

Em 2011, a juíza Patricia Aciolli, que enquadrava policiais corruptos e integrantes de milícias, foi emboscada e abatida como um cão com 12 tiros de fuzil no meio da rua, no Rio de Janeiro. Era uma mãe de família exterminada para a dor incurável de quem a amava, era o Estado de Direito sendo atacado, a democracia em perigo, etc., alertaram em vão os lúcidos. Ficaram caladas a então presidente Dilma Rousseff e a extrema-esquerda que bradam agora as sandices da conhecida imoralidade que só enxerga a individualidade submetida à ideologia que suporta causas. Para esse pensamento torpe, não há brasileiros de ambos os sexos, de qualquer idade, profissão, credo, cor ou classe social sendo assassinados; o radar abjeto do cafetão ideológico procura o cadáver modelo, o cadáver causa. O da vereadora Marielle Franco é perfeito nesse sentido; mas também é perfeito para os assassinos que, aparentemente, selecionaram alguém cuja morte poderia gerar tamanha repercussão entre os opositores da intervenção. Por isso, o cadáver de Anderson Gomes e dos demais produzidos naquele dia, nos dias anteriores e nos seguintes, tenham merecido somente comentários ligeiros, quando muito, entre os companheiros de Marielle. Homem, branco, heterossexual e não militante de causa alguma, Anderson não conta, quase atrapalha, pois se parece mais com um “representante do sistema opressor patriarcal neoliberal golpista” do que o protótipo de uma vítima dele e teve o mau gosto de morrer logo ao lado da vereadora, ela, sim, vítima empoderada.


Sim, Marielle, querem seus companheiros, é vítima desse algoz imaginário encarnado na polícia, na intervenção federal, em Temer, no machismo, no racismo, no “golpe” de 2016. Assim, em protestos coletivos e individuais, os militantes cafetões de cadáveres não pedem o fim da criminalidade ou da violência, mas o da polícia e da intervenção. Que tal? Música para os olhos dos criminosos que veem seus negócios ameaçados pela intervenção federal, sinal de que ela, mesmo incipiente, pode abrir caminhos que levem à civilização a população pobre do Rio de Janeiro brutalizada pelo tráfico, pelas milícias, pela banda podre da polícia e, sim, pelos cafetões asquerosos na sua metafísica do bem que categoriza cadáveres e romantiza a bandidagem. Quem matou Patrícia Aciolli foi o braço até aqui invencível do crime organizado: as milícias e policiais corruptos. Os assassinos foram presos, mas mais nada foi feito a respeito da catástrofe de fundo, nada aprendemos, esquecemos quase tudo, ainda que tenhamos perdido um certo jeito de sorrir e, desde então, houve quase 200 mil assassinatos no país. Dramas voláteis. Quem matou a vereadora Marielle e o motorista Anderson não foi o carrasco inventado pela extrema-esquerda; nem eles teriam escapado se estivessem armados como quer a extrema-direita de dentro de seu fetiche sombrio por armas, também ela entregue ao gozo doente da própria cafetinagem macabra. Não sabemos ainda quem são os assassinos, mas já sabemos que a morte tem cafetões: repulsivos militantes de extrema-esquerda e de extrema-direita que disputam cadáveres para suas causas hegemônicas.

Nos próximos dias, levantar-se-ão clamores por leis mais duras e penas mais longas que não serão aplicadas no país em que 8% dos assassinatos são apurados. Para quem gosta de respostas e alvos fáceis, a má notícia que repito aqui há algum tempo é que este desolador florão da América com vista para o inferno não precisa da lentidão ou leniência do STF para a glória da impunidade, pois conta com elas já na base do sistema jurídico. Ele tem 140 mil funcionários para garantir que a lei não se aplique; inépcia, sucateamento ou falta de equipamentos e treinamento, drenagem de recursos pela corrupção e pelos privilégios estabelecidos entre a legalidade duvidosa e a imoralidade inquestionável mantêm uma nação na antessala do inferno. É a certeza de ser pego e de punição o que inibe um criminoso, somada a ela, o controle das fronteiras para deter a entrada de armas e drogas ajudaria a trazer o Brasil para as cercanias da civilização. Tudo isso será dito novamente nos próximos dias; logo depois, o novo vídeo de Anitta, alguma novidade esdrúxula do STF ou o namorico de subcelebridades nos farão esquecer Marielle, Anderson e demais dramas voláteis. No Brasil, o mundo acaba para continuar no dia seguinte porque, afinal, a vida, tão volátil como nossa memória e aprendizado sobre nossos dramas permanentes tratados com respostas estéreis à revolta passageira, continua. Ao menos até virarmos a esquina e nos tornarmos vítimas, empoderadas ou não.

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