sábado, 17 de março de 2018

Digitais do Estado abundam na morte de Marielle

O proverbial abismo para o qual a segurança pública caminha no Brasil é uma figura de retórica convenientemente dispersa. Como a bandidagem já dá as cartas há muito tempo e, mesmo assim, o brasileiro continua a ver suas novelas e a pagar os seus carnês, o país vive a ilusão de que o inferno é apenas uma ficção admonitória que nunca se tornará uma realidade irrefutável. Mas a investigação preliminar do fuzilamento da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro, indica que o caos completo já chegou. O Estado, que deveria prover a segurança, deixou uma abundante quantidade de digitais na execução.


As autoridades de Brasília, incluindo Michel Temer, ruminam a certeza de que o crime da noite de quarta-feira foi um desafio à interferência de Brasília na segurança do Rio. Se a intervenção a ser afrontada é federal, nada mais perturbador do que utilizar munição federal para atingir o alvo. As nove cápsulas de balas calibre 9 milímetros recolhidas na cena do crime pertenciam ao Departamento de Polícia Federal, em Brasília. Espanto!

A munição veio de um lote de 1,9 milhão de balas vendidas à PF em 2006 pela CBC, Companhia Brasileira de Cartuchos. Uma parte foi desviada, confirma o ministro Raul Jungmann (Segurança Pública). Num desses desvios, ocorrido em 2007, um escrivão chamado Cláudio de Souza Coelho vendeu os cartuchos da PF a bandidos do Rio, acrescenta Jungmann. Pasmo!

O escrivão foi processado, demitido e preso. Entretanto, Jugmann esclarece que mais de 50 inquéritos já foram abertos em função do surgimento das cápsulas surrupiadas da Polícia Federal em cenários de crimes —no Rio de Janeiro e alhures. Quer dizer: a PF diz ter punido o escrivão que entregava ouro aos bandidos. Mas não logrou recuperar a munição, que continua produzindo cadáveres mais de uma década depois do desvio. Estupefação!

Longe dos holofotes, autoridades e investigadores classificaram o assassinato de Marielle como uma “execução” desde a primeira hora. Diante dos repórteres, porém, os protagonistas do caso comportavam-se como se tivessem sido assaltados por uma dúvida. Ou várias dúvidas. Natural. Os bons detetives sempre abrem o leque de hipóteses no início de uma investigação. De resto, a coisa anda tão degradada no Rio de Janeiro que até as dúvidas assaltam. Mas as imagens captadas por câmeras ao longo do trajeto de Marielle vão dissipando as incertezas.

Já não há a mais remota dúvida de que Marielle e seu motorista foram passados nas armas com método. Coisa de profissionais. Sob o guarda-chuva do general-interventor Braga Netto, que administra a segurança do Rio por procuração de Temer, a própria Polícia Civil fluminense informou aos escalões superiores que sua principal linha de investigação é a seguinte: a execução foi planejada e executada por policiais ou ex-policiais que atuam em milícias.

Escondidos num carro estacionado atrás do veículo de Marielle, os assassinos poderiam ter disparado contra ela na Rua dos Inválidos, na saída do sobrado em que a vereadora se reuniu com um grupo de mulheres negras. Mas fizeram questão de ostentar a própria destreza. Seguiram o alvo por cerca de 15 minutos, em dois carros. Um deles emparelhou com o veículo em que estava Marielle. Os vidros escuros não prejudicaram a pontaria direcionada para vulto acomodado no banco de trás.

Se as suspeitas dos investigadores estiverem corretas, Marielle e Anderson foram executados com as balas federais da PF, disparadas por matadores ainda pendurados na folha estadual ou assassinos que aproveitam o treinamento que receberam às custas do Estado para empreender no ramo da barbárie.

Em português claro: a menos que as apurações sofram uma reviravolta, há uma enorme probabilidade de emergir das investigações um assassinato, por assim dizer, estatal. Em linguagem ainda mais clara: na guerra que Temer deflagrou ao assinar o decreto de intervenção, em 16 de fevereiro, o primeiro inimigo a ser enfrentado é o bandido doméstico, infiltrado nas forças de segurança do Estado.

Trata-se de uma obviedade que o general Braga Netto não ignora. Aliás, o interventor já manuseou o detergente ao trocar os comandos das polícias civil e militar. Começou a passar o rodo, providenciando meia dúzia de prisões. O esforço vai virar fumaça se a intervenção não apresentar rapidamente os executores de Marielle e Anderson.

Num país como o Brasil, que se equilibra à beira do vácuo em vários setores, há muitas definições para abismo. Mas, na área de segurança pública, nada se parece mais com o fundo do poço do que um cenário no qual as pessoas não se animam a conversar com um policial a não ser em legítima defesa. A certeza de que o abismo pode ser adiado indefinidamente derrete quando se constata que o Rio é apenas o pedaço do problema que está na vitrine. Há mais encrenca no fundo da loja.

Ao refazer o caminho da munição usada na execução do Rio, a polícia verificou que balas do mesmo lote surrupiado da PF mataram 17 pessoas no caso que ficou conhecido como chacina de Osasco, em 2015. Puxaram o gatilho três PMs e um guarda civil. Além dos cartuchos da PF, usaram projéteis adquiridos na CBC pelo Exército (um lote) e Polícia Militar de São Paulo (dois lotes).

O crime no Brasil é organizado porque o Estado é esculhambado. Tão avacalhado que a bandidagem consegue roubar bala das forças estatais como quem toma pirulito de criança. Além da certeza de que a segurança pública caiu no abismo não há a menor dúvida sobre quem o cavou.

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