Hoje, sei que a amazonense Dona Libânia foi a primeira professora de escola pública de Manaus. Foi também avó do arquiteto e urbanista Lucio Costa, reconhecido no mundo todo pelo projeto de Brasília.
Talvez muitos não saibam que o grande arquiteto também projetou as casas do poeta Thiago de Mello em Barreirinha. São os únicos projetos de Lucio na Amazônia. Em 2013, a prefeitura de Barreirinha ameaçou demolir uma delas, situada na margem do Paraná do Ramos. A ideia era destruir a casa para ampliar a orla e construir um outro porto na cidade. Esse ímpeto que destrói coisas belas e ergue coisas horrorosas é, entre outras coisas, uma mistura de ignorância com descaso pela memória material.
Um dos muitos exemplos da barbárie urbana no Amazonas foi a demolição do estádio Vivaldo Lima, um projeto premiado de Severiano Porto. A construção da Arena Amazônia para a desastrosa Copa do Mundo (2014) custou mais de 700 milhões de reais. Manaus, sem tradição de futebol, ostenta a gigantesca, imponente e inútil Arena, enquanto grande parte da população manauara vive em habitações precárias, sem acesso à infraestrutura e serviços públicos.
O mesmo destino teria o conjunto de casas projetadas por Lúcio Costa, não fosse a atuação da família de Thiago, de arquitetas e funcionários heroicos da Superintendência do Iphan do Amazonas, de jornalistas e de pessoas que defendem o patrimônio cultural do Amazonas e do Brasil. O relato do Instituto Thiago de Mello assinala que “das cinco casas projetadas por Lúcio Costa, apenas a ‘Casa de praia do rio Andirá’, a única que é de propriedade particular do poeta, está em bom estado de conservação. As outras casas de Barreirinha (foto) foram vendidas para o governo sob o acordo de que se preservaria o projeto original de Lúcio Costa e se daria uma finalidade cultural”.
Nada disso foi feito. Em 1992, o governo do Amazonas repassou as casas em comodato para a prefeitura de Barreirinha, que demoliu a Biblioteca “Moronguetá” para construir um pátio coberto, espécie de horrendo galpão. E isso sem necessidade, pois a área do terreno permitia outras construções. O leitor pode imaginar o tamanho dessa estupidez, que não é apenas local, pois esses atos irresponsáveis acontecem com frequência em todo o Brasil.
Tombado e restaurado, o conjunto arquitetônico pode ser transformado em centros comunitários destinados a indígenas e ribeirinhos, e também à população de Barreirinha, Parintins, Maués, e até de Santarém e outras cidades do Médio Amazonas. Seria ainda uma justíssima homenagem a Lucio Costa, a Thiago de Mello, à arquitetura e à poesia brasileira. Além desse forte gesto simbólico, esses centros comunitários seriam importantes para a educação de crianças e jovens numa região isolada, pobre, carente de atividades culturais.
Hoje, aos 91 anos de idade, o poeta amazonense espera, ansioso e angustiado, uma decisão do Iphan, que ainda não homologou o tombamento do conjunto arquitetônico projetado por Lucio Costa. Se o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural não analisar com urgência esse processo, a deterioração das casas será irreversível, e é provável que em pouco tempo sejam devoradas pela floresta, como diria uma personagem do romance A voragem, do colombiano José Eustasio Rivera. Mas, nesse caso, não se trata apenas da voracidade da natureza, mas também da insensibilidade e indiferença dos responsáveis pelo nosso patrimônio cultural.
“Os momentos do passado não são imóveis”, escreveu Marcel Proust. “Os momentos (e também as obras) do passado guardam na nossa memória os movimentos que os conduzem ao futuro: um futuro que se torna o passado, conduzindo nós mesmos até ele.”
Milton Hatoum
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