Gilberto Freyre (1900-1987), seminal na análise sociológica da sociedade patriarcal brasileira, deu títulos de contraste às suas duas obras mais conhecidas, “Casa-Grande e Senzala” e “Sobrados e Mucambos”, lançadas nos anos 30 do século passado. Polêmico, ele via interseções muito singulares, “tropicais”, entre classes antagônicas. Haveria sempre um espaço de encontro, de intercâmbio, de recíproca influência.
Esse elo, se existiu, parece inteiramente perdido quando olhamos as cenas de agudos contrastes que a ex-capital do Império e da República produziu nos últimos dias.
A suntuosa mansão do ex-governador fluminense Cabral e de sua esposa, em condomínio fechado de Mangaratiba, colocada em leilão com lance mínimo de R$ 8 milhões, é uma agressão às milhares de pequeninas e precárias casas da Rocinha, onde vivem cerca de 100 mil pessoas.
O dinheiro que Cabral, já condenado a 45 anos de cadeia, e sua organização criminosa viabilizaram para essa residência de luxo foi saqueado do Estado, que tanto carece dos serviços de educação, saúde, saneamento e segurança pública.
Esses doutores do poder e do roubo planejavam – no tempo das vacas gordas, antes de elas irem para o brejo – fazer um teleférico na Rocinha, desprezando o que os moradores consideravam prioridade. Já deviam ter planos propineiros acertados...
A sociedade está colhendo, a contragosto, o que o governo decadente do Rio de Janeiro plantou: criminalidade ilimitada.
Outro contraste: enquanto uma parcela da cidade festeja e dança, outra, bem mais numerosa, fica aterrorizada em meio ao fogo cruzado. Celebrar o quê?
A questão é trágica e complexa. Só há começo de solução a médio prazo. De imediato, ao cidadão comum resta torcer, rezar, orar para que a munição dos grupos armados acabe!
Diferentemente da “harmonia” de certa forma enxergada pelo Mestre de Apipucos, o que se imbrica agora é o banditismo oficial e o das quadrilhas do tráfico armado. A (falta de) “autoridade moral” dos ladrões de gravata e capital (alguns, enfim se dando mal!) e dos chefões do varejo das drogas ilícitas se equivale.
Este hoje de sangue e chumbo é consequência de anos do incremento do poder das máfias dentro e fora do Estado Nacional.
A terrível ironia, neste momento, é um presidente da República denunciado por participar de organização criminosa autorizando as Forças Armadas a ajudar a desmantelar... organizações criminosas.
Não nos iludamos, ainda que com o crescimento da sensação de segurança para quem estava sob tiroteio sem trégua: após 15 meses de ocupação militar na Maré, tudo voltou a ser como no indesejado antes.
Uma política de segurança pública eficaz pressupõe planejamento democrático e participativo, com envolvimento das comunidades (aproximação real); lisura dos agentes, sem conluio com o crime; combate efetivo e imediato ao crônico e crescente armamentismo; credibilidade e legitimidade dos governantes. E uma nova política de drogas, pois a da “guerra” fracassou.
Sem isso, tudo continuará paradoxal e toda ação será paliativa e frágil. Quem paga essa conta mortal é a população desamparada, qual marisco fustigado entre o rochedo e o mar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário