Diminuir preços e não permitir aos clientes nenhuma previsão sobre gastos com saúde é plano de arrecadação de dinheiro e engodo assistencial. Essa proposição seria mais uma peripécia especulativa, não fosse a irrupção de tantas exceções que se tornam regras.
Na retomada do debate sobre o Obamacare nos EUA torna-se claro que nenhuma solução diminui a intervenção governamental sem engrossar as fileiras dos sem-seguro ou dos atendidos em regime do por favor, da caridade. A rejeição do sistema de saúde defendido por Trump, baseado na capacidade individual de pagar seguro privado, se efetivou com voto de senadores republicanos. Sinceros adeptos do laissez-faire sabem que o funcionamento de ambulâncias em via pública e bancos de sangue exigem financiamento de fontes públicas e que os custos totais com saúde aumentam quando se exclui segmentos populacionais das estratégias de proteção aos riscos e das chances de obter diagnósticos e tratamentos precoces. No entanto, o processo de debate e proposta nacional de plano barato estão completamente desconectados da racionalidade teórica e das evidências cientificas.
A vontade de mega-vendedores de produtos para a saúde, não mediada ou filtrada pelas instituições públicas, requer que a sociedade permaneça capaz de discriminar enunciados e ações inevitáveis e necessárias daqueles que são inúteis e inaceitáveis. Segundo as promessas empresariais, o país, em função da crise econômica mundial, reduziu e irá cortar gastos públicos com saúde, logo a única solução é comercializar mais planos privados. Porém, a associação automática da austeridade com redução das despesas com saúde é incorreta. Em plena recessão, alguns países ampliaram despesas com a área — por exemplo, França, Alemanha e Holanda — e houve redução no Reino Unido, na Espanha e, é claro, na Grécia e na Irlanda. Assim, menosprezar os efeitos das políticas de austeridade sobre a saúde é um erro tão importante quanto afirmar a inevitabilidade da privatização.
Afirmar que os sistemas universais são mais custo-efetivos pode ser contraintuitivo. Dependendo de como se faça as contas atender a todos, por definição, custa muito mais. Mas as demonstrações existentes são robustas, as políticas de saúde que abrangem a população inteira conseguem conter preços e melhorar as condições e a qualidade de vida. Lobbies empresariais da saúde se valem de desejos e desafios no curto prazo. Exibem pesquisas, pagas por eles mesmos, que confirmam o senso comum: os brasileiros querem ter planos de saúde e concordam em pagar menos pela mensalidade e aceitam, em condições saudáveis, tirar mais do bolso quando tiverem que usar serviços. Porém, ignoram aquelas que retratam a imensa insatisfação com a saúde, até maior dos que a dos que têm plano. Na pesquisa CNI-Ibope, a saúde é “desaprovada” por 85% do total e por 93% e 90% dos entrevistados com maior escolaridade e renda.
Como os brasileiros que querem plano privado nunca foram interrogados a respeito das mazelas para utilizá-los, talvez considerem que a política conduzida pelo ministro da Saúde, cujo carro-chefe é o estimulo ao setor privado, não presta. É perceptível que se os atuais planos, hipoteticamente caros em relação aos que virão, impõem barreiras ao acesso e à qualidade, a tendência é de multiplicar pela redução do preço as dificuldades de ingressar e sair de um lugar ou nível de assistência para outro. É falso propagar uma única alternativa, um caminho sem volta para a organização do sistema de saúde. O uso do termo acessível para alcunhar o plano de menor preço faz uma confusão proposital. Barato significa não ter acesso, pagar plano e ser atendido pelo SUS. Temos a possibilidade de recusar falsas designações, resgatar o sentido clássico do termo acesso, como igual oportunidade de dispor de ações e serviços de saúde, e o de instituições públicas, como organizações que trabalhem para a saúde de todos.
Ligia Bahia
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