sábado, 10 de junho de 2017

A grande festa da hipocrisia

A semana que termina teve como destaque, no sinuoso prédio do TSE, com seu auditório forrado de tapetes vermelho-sangue e paredes acaju, um magnífico espetáculo teatral, transmitido ao vivo para 200 milhões em ação. Entre os personagens principais, o relator Herman Benjamin (consagrado nos memes como filho de Tom Jobim e Luiza Erundina) tinha tudo para ser um mero coadjuvante. Mas roubou a cena do protagonista, Gilmar Mendes, este no papel de vilão, investido como nunca, e como sempre, em ganas de engavetamento.

O título da peça, anunciada com ares de final do Superbowl, poderia ser “O julgamento da chapa Dilma-Temer”. Mas Dilma, carta fora do baralho desde o show do impeachment, não era mais o alvo. Do contrário, o final da peça, anunciado nas coxias com o placar-spoiler de 4x3, seria outro.

Torcendo por uma surpresa de última hora, os espectadores tiveram roubado o suspense tradicional de todo thriller de julgamento. Na cabeça dos críticos, germinou a razoável hipótese de que juízes de um tribunal superior destinado a zelar pela lisura das eleições dão suas decisões com base em pressões parlamentares e palacianas, se não articulações espúrias com o Executivo.

A justificativa, defendida por Gilmar: necessidade de se manter a estabilidade política. Uma fala digna de teatro do absurdo, sob um cenário perfeitamente oposto: uma radical instabilidade política que beira a convulsão institucional está na ordem, e na desordem, do dia e das noites caladas, carreada pelo desmascaramento do chapa-réu, Michel Temer, em praça pública.


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Foi aí que o juiz Benjamin, com suas mil páginas exibidas em carrinho de supermercado, começou a ganhar real protagonismo: lembrou que Gilmar Mendes, quando Dilma ainda era a bola da vez e Temer, vice-presidente pré-conspiratório, lutou bravamente pelo prosseguimento e o embasamento do processo em vistas de sentença condenatória.

A máscara de Gilmar, que já estava bem folgada, caiu de vez (e mais uma vez) por terra. Bem a seu estilo agressivo-canastrão, na cadeira de presidente do TSE, proferiu os impropérios de praxe. A partir daí, à medida que, no noticiário, ia ficando ainda mais nítido que o jogo era de cartas marcadas, o bate-boca entre ele e o relator acabou rendendo os lances mais interessantes, do ponto de vista dramatúrgico e também cívico: era o mau ator (Gilmar) sendo subjugado pelo antagonista previamente derrotado (Benjamin). Este emergia do meio da encenação para mergulhar nos pontos mais nevrálgicos do real profundo.

Se ainda havia iludidos na plateia, o público quase unânime caiu em si, e aplaudiu Benjamin. Como num clímax hamletiano, a farsa era revelada por um grupo de atores. Mas, no caso, a verdade seria insuficiente para restabelecer a Justiça ou punir a infâmia, apesar do esforço do príncipe relator, que teve até que apelar para os povos indígenas ainda sem contato no fundo da mata virgem. Sorte dos índios isolados, livres de testemunhar tamanho engodo.

Enquanto isso, subtramas assustadoras vinham à tona de outro tribunal, que revelava os voos do réu, no avião de Joesley, o delator-bomba-meu-boi. Temer entrava em contradição umas três ou quatro vezes (já perdi a conta), como é de seu feitio: lançar balões de ensaio em série. Detalhes como o ciúme de Michel ao ver as flores enviadas por Joesley à recatada Marcela povoaram o imaginário do público com a hipótese de um triângulo rodriguiano. Outro lance romântico de avião com alta dose de bizarria, em interlúdio rasga-seda, revelava que Gilmar e Benjamin viveram inesquecíveis aventuras em voos bimotor por este Brasil modorrento, o que provocou risos e enjoo na audiência.

Voltando às coxias, o PT, é óbvio, silencia. O PSDB (ironia: autor da ação!) aguarda que caia o pano para, segunda-feira, decidir se sai de cima do proverbial muro, ou continua nele. O cinismo do tucanato beira uma cena de nudez inesperada em peça moralista. Alegando preocupação com as reformas, o partido recusa-se a assumir posição e espera pelos “fatos novos”, fechando os olhos para os fatos velhos do descalabro corrupto do governo que integra, e da própria hipocrisia que vem corroendo o que lhe resta de honradez.

Por estes dias, aliás, um tucano mencionou o temor geral de que a legenda perca o bonde da história. Como se, até aqui, a esta altura, estivesse no bonde certo e não num ambiente partidário onde todos, de um modo ou de outro, embarcaram, voluntariamente, no trem da morte dos princípios que deveriam reger a boa prática política.

Se o pano já caiu no julgamento do TSE (nas cenas finais, Gilmar foi canhestra e elogiosamente comparado a Pilatos, tiro que saiu pela culatra) o teatro continua nas outras salas da República. O público, que, sem escolha, financia, com seu suor e seus impostos, a grande festa da hipocrisia, não tem o direito de pedir o seu dinheiro de volta. Mas tem o direito (e o dever) de deixar a sala e se expressar, que a democracia lhe outorga. Ao abrir mão, passa a ser cúmplice do embuste encenado pelo algoz, a quem delega a própria voz.

Arnaldo Bloch

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