quarta-feira, 19 de abril de 2017

Um Brasil comprado

O que está acontecendo com o Brasil? Será que essa nova onda de pornopolítica tem uma origem? É nova ou sempre aconteceu?

Saber a origem é importante porque toda gênese pressupõe um apocalipse. Afinal, tudo que começa, acaba.

Será que hoje vivemos o apocalipse que finalmente sinaliza um limite? Será estamos testemunhando o esgotamento de um estilo de lidar com as coisas públicas e com a falada e amada República?

Será que o Brasil continua sendo nosso mesmo depois de saber que ele foi vendido pelo governo Lula-Dilma a uma grande empresa que não é ianque, britânica, inglesa ou francesa, mas tão baiana quanto a Baixa do Sapateiro?

Quero me convencer que sim.


Acho que essa crise na qual os Srs. Emílio e Marcelo (pai e filho) e seus associados abrem o bico e falam com a serena superioridade dos doadores, obriga a um denso exame de nós mesmos.

Não é só um capitalismo de compadres. É também um capitalismo ajudado por uma democracia de compadres. O que salta aos olhos é como a república — centrada em leis impessoais teoricamente válidas para todos — funciona seguindo uma renovada e imaginativa cartilha imperial. Nela, a etiqueta das simpatias dos baronatos mistura-se ao mercado e suspende a competição para os amigos. A mão invisível de Mr. Smith vira um escancarado abraço do lulo-dilmismo com a ambição germano-baiana da Odebrecht. A luta de classes foi desmoralizada pela simpatia pessoal. Nossa revolução é a da malandragem. Nada contra. Mas ela — eis crise que nos envergonha — também tem limites.

Como acreditar em esquerda e direita se ambas bebem o mesmo uísque comprado com o meu, o seu, o nosso dinheiro como diz o meu colunista favorito, o Ancelmo Gois?

Educados exclusivamente na linguagem da política, da fofoca e da economia, não sabemos o que fazer com esses favores e presentes tão bem analisados nas suas implicações sociopolíticas por Marcel Mauss. Toda democracia que se preza vigia a lógica do favor ou do dar-para-receber. Em todo lugar, quem é parlamentar, ministro e, principalmente presidente da República não pensa só na sua biografia, mas sabe que é um servidor do cargo que lhe foi concedido.

É preciso muita vontade de querer desconhecer-se a si mesmo para imaginar que narcisistas (esse traço marcante dos chamados políticos) possam resistir aos poderes inerentes a certos papéis sem um rigoroso código de ética. Sem politizar não apenas decisões e projetos, mas os cargos que constituem a estrutura de uma nação ordenada debaixo da liberdade e da igualdade, mas vergonhosamente desigual.

Nosso problema não é apenas de legislação, mas de uma revolução nas práticas sociais marcadas por toda sorte de privilégio. Nosso berço é a aristocracia branca patriarcal misturada com a orfandade da escravidão negra.

Sem esforço, vamos continuar recaindo — tal como fazem os hermanos latino-americanos — na velha estadolatria, estadopatia e estadofilia. Na crença inocente de que podemos mudar nossas rotinas de poder sem transformar radicalmente nossa sociedade com os recursos da sociedade que deve englobar o Estado e o governo.

O enriquecimento escandaloso não é o do mercado. É o que usa a ética maussiana do “dar-receber-retribuir” (base, aliás, da sociabilidade humana) sem controle e como um instrumento consciente de embolsar a riqueza nacional. É esse enlace incestuoso entre o pessoal e o impessoal, entre a igualdade legal e as hierarquias tradicionais que legitima as brutais ultrapassagens naquilo que Livia Barbosa estudou magistralmente como o “jeitinho” e este vosso cronista denunciou na desmontagem sociológica do “Você sabe com quem está falando?”, em 1979.

Um desmonte que só veio a ter resultados práticos para seus usuários na Lava-Jato. Na operação que tem denunciado como crime a aliança entre ocupantes de cargos privilegiados e as doces amizades que fazem parte do nosso estilo de exercer e matar cordialmente quem discorda de nós.

Aqui, o “capital social” do Bourdieu casou-se com o “capital espoliador” do Marx. O padre conscientizado foi o petismo, os padrinhos e madrinhas, a velha elite que sempre aprisionou a sociedade negra e ex-escravocrata, com normas controladoras.

Nosso erro é pensar que sociedade não tem normas, estilo ou cultura. Esquecendo que entre o estado e a sociedade existe um “governo” e que nele estão nossos parentes, partidários e amigos, supomos que leis podem suprimir velhos hábitos. E quanto mais fabricamos leis, mais sofremos reações corporativas vindos de nossa própria rede de relações pessoais. Aí, amigos, está a chave da mudança ou da permanência. Do uso ou do abuso.

Agora que descobrimos como um presidente do povo e eleito pelo povo virou, como afirma tranquilamente o patriarca Emílio, um empregado de luxo da Odebrecht, talvez se comece a enxergar que o assunto é muito mais sério e o poço muito mais fundo.

O centro da coisa jaz em deixar que normas impessoais e válidas para tudo e todos sejam englobadas pela ética particularista, intimista e pessoal cujo axioma garante que cada caso é um caso.

Nada além do trivial que Weber e Tocqueville, com ajuda de Marcel Mauss descobriram.

Roberto DaMatta

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