A demissão sumária de dois médicos motivada por comentários, considerados antiéticos, sobre a doença de Marisa Letícia dá o que falar e pensar. Os empregadores de ambos os profissionais agiram rápido. Tiraram a fruta estragada da cesta para resolver no curto prazo problemas de contágio interno e das reputações de suas instituições junto à opinião pública. Entretanto, as causas que motivaram declarações desfavoráveis à paciente, posteriormente atribuídas ao corretor de texto, precisam ser conhecidas e compreendidas. Um dos temas prediletos de redes sociais organizadas por médicos, desde listas de amigos da turma da faculdade até movimentos que propugnam mudanças nas diretorias de entidades e empresas médicas, é a repercussão das denúncias de corrupção do PT.
O programa Mais Médicos provocou uma clivagem com a dita esquerda pútrida. Médicos eleitores do PT se sentiram traídos, até mesmo pela sociedade que aplaudiu os cubanos, e jamais perdoaram alusões sobre serem elitistas, vindas de quem “roubou e jamais ralou para atender o melhor possível nos serviços precários do SUS”. A reação contou com o apoio entusiasmado de entidades médicas, algumas das quais integraram a lista de assinaturas pró-impeachment, divulgada como matéria paga. A sensação de decomposição é mútua.
Em outros grupos, o papo é similar, xingamentos, desejos de que os denominados petralhas paguem por seus alegados crimes com punições extremas, inclusive a morte. O que chocou a todos, incluindo quem usa a internet para se manifestar contra o PT, foi saber que médicos se destituíram de seus compromissos profissionais e divulgaram informações confidenciais seguidas por comentários de ódio. Quem gostaria de ser atendido por profissionais que não são capazes de discernir entre a liberdade de terem e expressarem ideias e ideais políticos e a necessidade de estrita preservação da ética? Até o final do século passado, as fronteiras entre o que pode e o que não pode na saúde eram transmitidas por professores cultos, humanistas, que foram capazes de produzir um pensamento nacional sobre a Medicina. Jovens médicos conviviam com mestres que atendiam respeitosamente pobres e ricos e ensinavam que só existe uma Medicina. Esse aprendizado se tornava permanente com o ingresso profissional em unidades públicas de saúde, cujos chefes eram notórios médicos e instituíam padrões de conduta inspirados em suas práticas. A privatização do ensino e da assistência desativou o circuito mestre-discípulo e nada ficou no lugar.
A comunicação de médicos entre si, com pacientes e com a sociedade é uma preocupação de diversas entidades profissionais internacionais. Mas, as íntimas relações entre profissionais e usuários de serviços de saúde envolvem expectativas elevadas sobre o comportamento sigiloso dos médicos. A regra é que a conectividade não deve afetar o profissionalismo, isto é, o contrato informal de atividades autorreguladas, segundo o qual existe reciprocidade entre médicos e sociedade em termos de dignidade e respeito. O Colégio Americano de Médicos e o Conselho de Médicos do Reino Unido, por exemplo, consideram que mensagens disseminadas por via eletrônica são úteis para ampliar o contato com pacientes e população, mas requerem normas de uso. Outras desencorajam a participação em redes sociais que possam ser direta ou indiretamente acessadas pela sociedade e ainda advertem para a necessidade de “realizar uma pausa antes de postar”.
O choque gerado pela atitude de médicos brasileiros sacudiu as convicções estruturadas em torno dos nós, os corretos, contra os outros, que não prestam. A velha lição mostrou que ainda está válida. Os médicos serão íntegros se souberem honrar a confiança dos pacientes, seja lá quem forem. A espera de que um dia a realidade apresente suas demandas parece não ser a melhor forma de resolver dilemas que envolvem a vida e a morte. Podemos e devemos nos antecipar ao que vem por aí. A Olympus, fabricante de endoscópios, foi condenada pelo Departamento de Justiça dos EUA por pagar comissões a médicos e hospitais, inclusive na América Latina.
E por aqui, apesar das prisões de médicos, as denúncias sobre a promiscuidade que envolve o pagamento de material médico se acumulam. Foram autorizadas a abertura de mais de cem novas faculdades de medicina, quase todas privadas, menos equipadas e dispondo de professores com menor grau de titulação do que aquelas cujo desempenho tem sido baixíssimo no exame do Conselho de Medicina de São Paulo. No curto e médio prazos, haverá cerca de 200 mil médicos a mais no país com diploma tipo arco-íris, um combo que conjuga formação com pote de ouro. A alcunha de mensalidade cara para uma das faculdades de medicina privada é investimento. Incongruências demais e pausas e providências de menos para resolver os reais desafios da saúde.
Ligia Bahia
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