O empresário simpático e preparado, projetado como um dos homens mais ricos do mundo, está, até o momento em que traço essas linhas, foragido porque, não sendo um nobre brasileiro de verdade, corre o risco de “pegar” uma prisão comum. De ver o sol nascer quadrado em presídios que o ex-ministro da Justiça petista, José Eduardo Cardozo, temia e classificava como medievais.
Batizado como celebridade, Eike Batista adquiriu tudo menos um diploma universitário. E assim ficou fora do patamar básico da nobreza nacional: o degrau dos “doutores”, que têm direito a tratamento diferenciado num sistema que fala de tudo, reclama de todos, faz da intriga profissional um ganha-pão, mas jamais se conscientizou dos privilégios que até hoje comandam e desgastam a nossa experiência democrática. Pois privilégios, aliados a redes de empenho nas quais se entra por simpatia e bajulação, conjugadas com mercado são a receita do “capitalismo selvagem” talhado por “arrumações”. Um título ou um cargo são suficientes para escapar do absurdo da igualdade da lei que - diz a ficção - valeria para todos.
Não é maravilhoso viver num país onde “ser doutor” relativiza o crime, ao mesmo tempo que, legal, mas antidemocraticamente, livra da “prisão comum” o meliante? Sem o privilégio do título, Eike corre o risco de acabar num desses cárceres administrados por facções criminosas, já que o nobre “Estado” que (na cabeça de muitos) seria a alavanca de redenção social mete o bedelho em todos os lugares, menos em algumas prisões que, como tudo que existe no País, estão também graduadas. Existem cadeias “modernas” e xilindrós cujas celas são centrais de crime.
Dizem que Eike teme a prisão comum, mas eu não acredito que um homem com o seu capital simbólico tenha algo a temer num país cujas regras variam de acordo com as pessoas. Primeiro, porque a prisão dos “grandes” é algo revolucionário (ou, dependendo do lado, revoltante) num Brasil onde governar tem sido - com raras exclusões - sinônimo de obter vantagens pessoais. Segundo, porque a organização social das facções, tal como elas foram pioneiramente analisadas por Alba Zaluar, funciona pelos mesmos princípios que ordenam o mundo social.
Eu dou lealdade e subserviência, você retribui com proteção e empenho. Esse é o lema implícito da vida política nacional e nas prisões. O prisioneiro neófito entra na facção porque o Estado não lhe garante segurança. No Brasil, “ir para a cadeia” corresponde a ser destituído de humanidade. A desumanização do prisioneiro faz parte da nossa ideia de castigo.
Ademais, como ter prisioneiros tratados com humanidade e, ao mesmo tempo, aprisionar políticos e empresários ambiciosos e desonestos? Estaria aí o centro do nosso dilema moral? A igualdade perante a lei implica o respeito pelos criminosos e - eis o paradoxo - na punição dos privilegiados. Aqueles a quem a sociedade confiou uma administração pública honesta e criativa. O voto dado exige uma devoção ao cargo, e o cargo, uma entrega ao bem comum. Mas como tornar tal valor uma realidade se os políticos e os empresários se associam para roubar, desrespeitando as normas fundamentais da honestidade? Se seguir a lei é, ainda hoje, uma babaquice, porque segui-la quando se está no poder?
O que essas prisões de “gente grande” revelam, o espanto que causam, o furor que despertam, é que elas confirmam que o nosso ideal constitucional de democracia e igualdade não existe. É uma ficção legal e política.
Não buscamos ser o cidadão comum. Todo queremos ser celebres e “grandes”. Queremos ser aquele cujo prestígio engloba até mesmo a verdade e os fatos. Aquele que é garantido por todo tipo de apoio e empenho. Todos entendemos, mas também sabemos como é difícil estabelecer uma cultura igualitária numa sociedade de barões, figurões e reizinhos. Pois até no inferno das nossas prisões, assistimos estupefatos à guerra pela precedência e pelo privilégio.
Roberto DaMatta
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