quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

A bravata de um homem mau

Let's crown Trump "King of the Village of Idiots" with his Medusa type hairstyle. You just can't keep your eyes off of it.:
Sou filha de refugiados. Meus pais, e uma parte muito pequena das suas famílias, tanto de um lado quanto de outro, tiveram sorte. Meu Pai, que falava português e era o único tradutor da língua na Budapeste dos anos 1930, escapou de um campo de trabalho graças a seu amigo Ribeiro Couto, que insistiu com o governo brasileiro, então simpático ao Reich, que desse um jeito de tirá-lo da Hungria, onde teria morte certa — como teve a maioria dos seus amigos. Anos se passaram antes que conseguisse trazer para cá a mãe, as irmãs e os cunhados. Sua primeira mulher, meu avô Miksa e meus tios morreram na Europa. Minha Mãe escapou porque, anos antes, numa briga com a comunidade judaica, meu avô Edoardo, só de birra, havia mandado batizar os filhos. Com isso, o Vaticano os considerou aptos a comprar vistos que o Brasil disponibilizara, gratuitamente, para “famílias católicas atingidas pela guerra” (para pagar o preço pedido, meus avós, que tinham uma boa situação econômica, foram obrigados a se desfazer de tudo o que possuíam).

Cresci ouvindo essas histórias. Cresci ouvindo como tantos parentes morreram porque não acreditaram que seriam mortos, e deixaram para fugir quando já era muito tarde. Cresci ouvindo como a Austrália recusou vistos para a minha família, como os Estados Unidos não quiseram recebê-la, como a Inglaterra a ignorou. Cresci ouvindo histórias de pessoas como eu, como vocês, como todo mundo — padeiros, médicos, músicos, burocratas — que morreram porque não tiveram a sorte dos meus pais, e não conseguiram encontrar um só lugar que as acolhesse, um só lugar para onde pudessem fugir. Cresci ouvindo que nunca poderíamos esquecer a História, e que nunca poderíamos deixar que se repetisse.

Eu não me esqueci.

Não consigo ver refugiados, seja lá de onde for, sem pensar nos meus pais e nas suas famílias. Penso também nos amigos deles, alguns com números tatuados nos braços, e nas histórias que contavam — os planos que ficaram pelo caminho, as profissões abandonadas, os parentes desaparecidos, as memórias de lugares que nunca veriam de novo.

Quando meus pais e seus amigos fugiram da Europa, o antissemitismo não se restringia à Alemanha. O mundo era um lugar hostil para os judeus. A maioria dos países proibia a sua entrada, e todos eles tinham argumentos muito “lógicos” para justificar a medida. Os Estados Unidos, por exemplo, negaram milhares de vistos, alegando que os refugiados poderiam ser espiões nazistas, e que atentariam contra a segurança nacional. O próprio presidente Franklin Roosevelt chegou a repetir, algumas vezes, a tese da infiltração de espiões — nascida de um único caso, descoberto em 1942.

A falha coletiva das nações ditas civilizadas em aceitar os refugiados judeus durante a Segunda Guerra deveria nos servir de alerta hoje. É impossível calcular quantos milhões de pessoas poderiam ter sido salvos, então, por um pouco menos de racismo e de omissão, e um pouco mais de compaixão e de humanidade.

As circunstâncias dos refugiados judeus de ontem e dos refugiados muçulmanos de hoje são outras; o mundo é outro. A humanidade, porém, é essencialmente a mesma, assim como é a mesma a dor dilacerante de deixar tudo para trás. A maioria das pessoas só quer viver em paz.
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Há muita gente no Brasil imaginando que a posse de Trump foi um triunfo da direita, e como tal comemorando cada um dos seus gestos bombásticos. É um erro. Trump não tem nada a ver com nada. Ele é um homem ao qual faltam os princípios mais elementares de educação e de compostura, uma mancha moral na História do seu país.

Nos Estados Unidos não há presidentes de esquerda. Há presidentes de direita, e presidentes um pouco menos de direita. George W. Bush era inculto e equivocado, e seu governo causou mais danos ao mundo do que conseguimos dimensionar corretamente, mas, de certa maneira, até ele era uma pessoa melhor do que Trump: tinha uma camada de hipocrisia que permitia imaginar que, no fundo, aspirava ter alguma inteligência e sentimentos mais nobres. Trump nem isso. É assumida e orgulhosamente grosseiro, um vilão de caricatura que serve, como ninguém, como propaganda contra o próprio país. É um presente dos céus para extremistas de todos os tipos — sendo, ele mesmo, o mais perigoso deles, dono do maior arsenal e de uma divulgação universal inigualável.

É impossível avaliar o estrago de relações públicas causado pelo seu decreto que proíbe a entrada de refugiados nos Estados Unidos, para não falar na quantidade de vidas perdidas ou prejudicadas. A leviandade com que este ato foi promulgado põe sob suspeita a seriedade e as boas intenções de qualquer outro que venha a assinar daqui para a frente. Ele não é obra de um estadista consciente do seu lugar no mundo. É uma peça populista, um exemplo trágico de arbitrariedade, a bravata de um homem mau.

Cora Rónai

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