Abastecimento de água e saneamento talvez sejam o exemplo mais óbvio desse jogo, mas não o único. Moradia popular, (in)segurança pública, vexaminosa precariedade dos transportes, trânsito infernal configuram outra constelação de exemplos, ligados entre si, interdependentes de instâncias diferentes. Seguem a receita de complicar para não resolver, ainda que todo mundo acene com promessas.
Estamos fartos e temos motivos. Ainda agora, quando a saída do Beltrame assinala outra perda, a da esperança, e se esvai a perspectiva de paz que as UPPs pareceram abrir, nos vemos patinando no mesmo ponto, sem sair do lugar — enquanto não piorar.
Mas não dá para fazer essas intervenções urbanas se não for possível garantir as desapropriações necessárias, coibir novas invasões, enfrentar as ligações entre mandachuvas locais e autoridades em gabinetes. Para não falar nos transportes, sempre apontados como braços do crime organizado, pelas possibilidades que oferecem para lavagem de dinheiro.
A certeza da impunidade se manifesta em todas as áreas. Vai além da corrupção e da desenvoltura crescente do crime organizado em todas as suas ramificações. Recai sobre o meio ambiente, de modo espantoso. Com ódio ao que a cidade tem de bom e atrapalha o ganho fácil.
“Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”, garante o hino. Pois que se liquide com isso...
“Rio que mora no mar”, cantou a bossa nova. Então que se acabe com o mar. Parece uma cruzada pela poluição das águas, na baía, nas lagoas, nos aterros variados, eliminando ilhas, emporcalhando os rios que descem em cascatas pela floresta e viram cloacas pelo caminho. A literatura nos fala de dezenas de praias que não existem mais, há fotos de canoas na areia ao pé da Igreja de Santa Luzia. Hoje se filmam despejos de esgoto in natura na Enseada de Botafogo, no costão de São Conrado, no sistema lagunar da Barra da Tijuca.
“Rio, serras de veludo”, continuava a canção. Pois então, que se derrubem os morros, se eliminem as matas, se invada o que puder. Chegando à estupidez de querer transformar o Jardim Botânico em área habitacional, sob proteção de políticos. Uma cidade tão absurda que os cuidados com árvores, jardins e parques ficam por conta da Comlurb, a do lixo.
“Sorrio pro meu Rio, que sorri de tudo...” Pois agora, na polarização política que nos assola, as pessoas andam quase rosnando quando mostram os dentes. É essa a tristeza maior. O Rio já vem perdendo tanto. Não pode perder sua alma, o espírito carioca de acolher e zombar, se divertir com irreverência, criando pontes de humor entre as diferenças.
Polo de atração, transformada em megalópole superpopulosa e atulhada, o destino da cidade não pode ecoar a bela foto de Lalo de Almeida esta semana na “Folha”: a copa gloriosa de um ipê-amarelo destacada no veludo verde da floresta, atraindo os olhares como estrela brilhante a guiar na noite escura. Indica o caminho aos madeireiros clandestinos. Basta sobrevoar, anotar as coordenadas, proteger-se por baixo das copas das outras árvores e ir lá derrubar. Nenhuma autoridade impedirá.
Como o Rio. Sucumbe, vítima da própria beleza. De seus encantos mil, cobiçados por milhões.
Ana Maria Machado
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