No dia seguinte, é a vez de Andrés Iniesta, um dos gênios do futebol. Quando o Barcelona venceu a Champions League em 2009 e a Espanha foi campeã do mundo na Copa de 2010, Iniesta afirma que estava destroçado. Havia uma sombra que sugava toda a sua "joie de vivre" e o jogador não via fim para tão longa noite.
Não sei que figura pública irá surgir amanhã para falar do "cachorro negro". Apenas sei que todas essas histórias vêm sempre embaladas com um secretismo envergonhado. Springsteen aguenta há 30 anos uma depressão crônica. Iniesta venceu os principais troféus da carreira quando habitava o abismo –e relatou o fato com uma mistura de culpa e alívio. Pior que a depressão é a vergonha que existe nos deprimidos.
Alguns dirão que fingir é necessário: o público gosta da máscara, não do rosto que existe por detrás. Aceito. Mas se Springsteen fosse diabético ou Iniesta tivesse um problema na tireoide, alguém acredita que a doença seria secreta durante anos ou até décadas?
A depressão habita um território à parte. E, no caso dos homens, um planeta a anos-luz dos terráqueos. Por quê?
O escritor Andrew Solomon, ele próprio um deprimido crônico, investigou o assunto em "O Demônio do Meio-Dia". O livro é uma mistura de relato pessoal sobre a doença e estudo histórico e científico apurado. Mas é a história que me interessa –ou, melhor dizendo, a forma como a "melancolia" foi sendo olhada ao longo dos séculos pelos "sábios" de cada época.
Nem sempre a depressão foi uma mancha indigna: no Renascimento e, sobretudo, com o Romantismo, a figura do deprimido transportava uma aura de genialidade e incompreensão que era, ao mesmo tempo, uma afirmação de humanidade (e autenticidade) acima da banalidade das massas.
Para os românticos, aliás, a grandeza de um homem era inseparável de uma certa inconstância do espírito, diagnóstico que assenta perfeitamente em líderes eminentes como Abraham Lincoln ou Winston Churchill.
Mas o interesse maior do livro de Solomon está na parelha que ele estabelece entre dois momentos do pensamento humano que sempre nos pareceram antagônicos: a religiosidade medieval e o racionalismo iluminista.
Para os medievais, a tristeza do espírito era contrária à vontade de Deus. O deprimido pecava porque sofria –ou, em alternativa, sofria porque pecara. Nas palavras da religiosa Hildegarda de Bingen, "no momento em que Adão desobedeceu à lei divina, nesse preciso instante, a melancolia coagulou no seu sangue".
Sempre que o homem deixa entrar no seu espírito "o demônio do meio-dia", ele apenas experimenta o que Adão sofreu quando se afastou do Pai.
O racionalismo iluminista apenas secularizou uma mensagem geneticamente cristã. Com uma diferença: a depressão, entendida como um insulto à graça de Deus, era agora um insulto à majestade da Razão.
A proliferação de asilos para os alienados a partir do século 18 não se explica apenas por motivos "médicos" ou "securitários". A filosofia tem uma palavra maior: era preciso remover da paisagem seres humanos que eram a negação visível do otimismo progressista. O futuro era solar; e um futuro solar não pode permitir criaturas lunares.
Hoje, no esplendoroso século 21, gostamos de afirmar que os tabus fazem parte da mobília de nossos antepassados. Mentira, claro. O estigma da depressão é uma cópia dos preconceitos religiosos e racionalistas de tempos idos.
"Depressão é moleza." "Depressão é fraqueza de caráter." "Seja forte." "Comporte-se como um homem." "Você tem de ser racional." "Tanta tristeza é pecado." Quantas vezes o leitor disse isso a um familiar ou amigo deprimido?
Passaram anos, e até décadas, para que Andrés Iniesta ou Bruce Springsteen confessassem suas dores.
Outros não tiveram tanta sorte: terminaram a vida balançando na corda, derrotados pela doença mas também pela culpa, só porque nós gostamos de falar merda de vez em quando.
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