No primeiro, o escritor baiano narra de forma crítica e meio escrachada a trajetória do Brasil e da formação de sua identidade, numa versão bem distinta dos livros e documentos oficiais. Já o texto de Sérgio Buarque, publicado no livro “Raízes do Brasil”, analisa como as elites se apropriaram da cordialidade e da informalidade, traços da alma dos brasileiros, para fazer do Estado uma extensão dos seus interesses – pessoais ou políticos.
Georges Le Mercenaire |
Sem a pressão da sociedade, Eduardo Cunha não seria cassado, não teria havido o impeachment de Dilma Rousseff, um ex-presidente não estaria correndo riscos de ser processado e condenado e a Lava-jato não teria chegado onde chegou, com a prisão e condenação de uma parte da fina flor do empresariado.
As instituições de Estado, como a Procuradoria Geral da República, Polícia Federal, instâncias da Justiça, inclusive o STF na maioria de suas decisões, também jogaram papel importantíssimo, claro. Não sabemos, contudo, até onde iriam se não houvesse o respaldo das ruas.
Não faz o menor sentido cair no endeusamento desse ente, o povo, ou transformar em virtudes traços negativos de nossa identidade, de nossa formação. O “jeitinho” perpassa toda a pirâmide social. Sua elite, mas também sua base, embora seja injusto dar a esses dois polos o mesmo peso na balança.
Para o andar de baixo, é a forma da sobrevivência, para o andar de cima, a de manter seus privilégios.
Somos uma sociedade de incipiente consciência política, até bem pouco tempo paralisada pelo desencanto e pela sensação da impunidade. Tudo pode voltar a ser como dantes, no quartel de Abrantes, se não forem superados gargalos, alguns dos quais seculares, de nossas instituições.
A Justiça, como destacou a ministra Carmem Lúcia, continua distante do cidadão comum. Opera com letargia e ainda gera a percepção de que o “homem cordial” de hoje é tão inatingível quanto nos tempos da Casa Grande, do Sinhôzinho.
O que dizer então do fosso abismal entre o mundo da política formal e o sentimento da sociedade? O sistema político está absolutamente falido, inteiramente de costas para o povo que a palavra da presidente da Suprema Corte quis expressar.
Um bom exemplo são as eleições municipais: o que mudou na campanha televisiva?
Os candidatos continuam sendo vendidos como um produto, dando tapinhas nas costas dos eleitores e pegando criancinhas no colo. É a própria figura descrita por Sérgio Buarque de Holanda, em 1936.
O sujeito cordial dos tempos atuais está em todas. Está na TV com promessas mil e juras de que não é político, fez discurso inflamado na Câmara pela cassação de Cunha e esteve na posse da nova presidente da Suprema Corte como convidado. Ou Lula, Sarney, e Renan não se enquadram no protótipo do homem cordial?
No caso de Lula, nem se fale. Simpático, paternalista, é chegado ao compadrio moderno; aquele onde o Estado não é apenas extensão do círculo familiar ou de ambições pessoais. É também extensão de um projeto de poder, de partido.
Talvez por isto tenha cofiado tanto a barba, com ar de preocupado, ao ouvir as palavras do ministro Celso de Mello. O decano do STF, em um discurso certamente acertado com seus pares, foi absolutamente cristalino. Não haverá cordialidades com os “marginais da República, cuja atuação criminosa tem o efeito deletério de subverter a dignidade da função política e da própria atividade governamental”.
Quem sentou no banco de convidados, amanhã pode estar no banco dos réus.
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