quarta-feira, 15 de junho de 2016

O operador de 'parissiga'

Caipira picando fumo, Almeida Júnior
Ebenezer acaba de se aposentar. Setenta anos. Pele enrugada como maracujá murcho. Óculos de grau que escorregam nariz abaixo. Tenta recolocá-los no lugar, as mãos não lhe obedecem. Tremem muito. Na boca, faltam vários dentes. Os que restam mostram cáries, e o tártaro preenche os espaços entre os incisivos. Recebe pouco mais do que o salário mínimo. Veio de Salvador para BH há quarenta anos. Trabalhou em empresas particulares como servente de pedreiro, depois virou vigia, mais tarde operador de “parissiga”.

– Parissiga? – estranhei. – O que é isso?

– Eu ficava na estrada controlando a passagem dos carros com a placa de pare e siga. Era operador de parissiga.

Contribuiu para a Previdência durante décadas. Não progrediu na iniciativa privada. Tampouco conseguiu ser admitido numa autarquia federal, em busca de melhor salário e menos desgaste. É analfabeto. Tem mulher e duas filhas que lhe deram netos, um deles uma pestinha aos dois anos: ao puxar a toalha, quebrou toda a louça que estava em cima da mesa. Ebenezer gosta do menino, mas o prefere longe de sua casa. Os pais são muito modernos, ele confessa, não educam o garoto à maneira antiga, severa, e ele não tem dinheiro para comprar pratos novos.

A casa de onze cômodos que construiu com as próprias economias e a ajuda de um genro empreiteiro, “moço importante, atirado, que consegue obras de até quinze mil reais nos bairros chiques”, essa casa foi desapropriada pela prefeitura que o indenizou com o dinheiro suficiente para comprar outra com apenas cinco cômodos, mas “está bom”: Ebenezer se julga satisfeito de ter onde morar. E levanta as mãos para o céu em agradecimento.

Pergunto-lhe o que achou do afastamento da Dilma, ele demora uns segundos labutando com o pensamento:

– Eu ouvi mesmo falar que estão querendo afastar essa Vilma – percebo que ele aprendeu as táticas evasivas dos mineiros. – Já afastaram?

– Sim, na semana passada. O que achou?

– Dizem que era um moço importante que queria afastar a Vilma.

– Um moço? Ele é mais velho que o senhor.

– Pra mim esse povo é tudo igual.

Ebenezer conta que mora no Pau Comeu e lá tem muito tiro. A rapaziada gosta de “essas coisas”.

– O que quer dizer “essas coisas”? – indago.

– Fumo e pedra – ele diz de lado, para dentro da boca, como se receasse as palavras.

Pedra me remete a Ebenezer, originalmente pedra da ajuda, em hebraico. A curiosidade me domina:

– O senhor sabe o que significa Ebenezer?

– Até aqui me ajudou o Senhor.

Analfabeto, desdentado, doente de Parkinson, operador de parissiga, confunde Dilma com Vilma. Ebenezer. Um brasileiro. Ele me cativa. Sua inocência venceu sete décadas e continua intacta.

Luís Giffoni

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