sexta-feira, 20 de maio de 2016

Nós que nos amávamos tanto

Dois pontos de vista antagônicos separam, em linhas gerais, o país: “foi golpe” e “foi impeachment”. Quem acha que houve golpe, quem foi às ruas de vermelho protestar e quem abriu cartazinhos em Cannes acredita que estamos desgovernados, vivendo tempos de ilegalidade; quem acha que houve impeachment acredita que temos um governo interino, por pouco representativo que seja. Ainda que tenha sido contra o impeachment, eu me incluo nesse segundo grupo. Por ridículos que sejam os deputados e senadores que afastaram Dilma, seus votos são tão válidos quanto os dela, e o impeachment é uma ferramenta legal, à qual o PT não hesitou em recorrer inúmeras vezes.

Não há consenso em relação às pedaladas, mas para cada jurista que acha que elas não são suficientes para afastar ninguém, há pelo menos outro para garantir que sim, que elas foram crime fiscal. Tudo isso já foi dito e redito mil vezes, exaustivamente; mas não há hipótese de um lado convencer o outro, ou de o outro convencer o um.

Os dois estão separados por convicções, por formas muito diferentes de entender o que deve ser feito para tirar o Brasil do buraco e, lamentavelmente, por camadas cada vez mais profundas de ódio. Mas não há apenas crápulas de um lado, ou canalhas de outro. Nenhum deles detém o monopólio das virtudes, do esclarecimento ou da inteligência. O Brasil não está dividido entre manipulados pela mídia golpista, de um lado, e gente cega pela ideologia, do outro. Está dividido entre pessoas que pensam diferente umas das outras, e que não estão conseguindo ver acima dessa diferença.

Não sei quando vamos conseguir transpor essa muralha de rancor, se é que um dia vamos conseguir. Histórias cruéis de separação entre amigos e família, que tantas vezes ouvi contar a respeito de outros países, mas que nunca acreditei que pudessem acontecer no Brasil, viraram lugar-comum. Uma amiga está afastada da filha; outra não conversa com a sobrinha há mais de um ano, e nem tem vontade.

A internet, que eu tanto amo, piora as coisas. Pessoas escrevem desaforos que jamais diriam em voz alta, ainda que os pensassem; mas o que é pensado e não dito não magoa ninguém, e ainda pode ser remediado. A palavra escrita fica para sempre.

Há alguns dias li isso na página de um amigo:

“Sinal dos tempos: evitei dar like numa foto agora, indo contra o impulso automático, porque iria gerar mal-estar na pessoa simplesmente por ser eu”.

Por acaso, ele é um dos homens mais doces e sensíveis que conheço; a prova é, justamente, ter percebido o quanto a sua simples presença seria constrangedora. Seu crime é ser contra o governo Dilma.

Para mim, esse clima de ódio será, para sempre, a verdadeira herança maldita da política brasileira, a grande maldição que Lula lançou sobre o país ao dividi-lo oficialmente entre “nós” e “eles”, autorizando todo mundo a ofender o próximo, à esquerda e à direita, e levantando, espero que não para sempre, a tampa das nossas desavenças.
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É difícil julgar um governo que ainda não completou uma semana, mas Temer começou mal. Até pela polarização do país, ele não podia se dar ao luxo de errar, ainda mais onde não precisava. Já nem vou discutir a capacidade técnica do seu ministério, mas é inaceitável, no momento atual do país, nomear pessoas que estão às voltas com a Lava-Jato; e é inaceitável, no momento atual do mundo, constituir um ministério com grau zero de diversidade.

Não se trata de nomear “representantes do mundo feminino” (!) ou minorias apenas por nomear. Envolver vozes diversas, e eventualmente dissonantes, enriquece qualquer grupo, e melhora os seus resultados. Pessoas de gêneros, etnias e classes sociais diferentes fazem diferentes perguntas e têm diferentes níveis de sensibilidade; hoje não é mais possível abrir mão dessa quantidade de experiências e interesses.

Ao mesmo tempo, quando olha para o governo, a população precisa se sentir representada — e é muito difícil para a maioria da população se sentir representada pelo grupo bisonho e quase caricatural escolhido por Temer, que em pouco ou nada lembra um “ministério de notáveis”.

Para mim, tão preocupante quanto a homogeneidade do ministério é notar a falta de fio terra do presidente interino que, como político de larga experiência, devia saber melhor onde pisa. Não é possível que ele não tenha se dado conta da péssima mensagem que a falta de diversidade do seu ministério transmitia, assim como não é possível que não tenha percebido o tamanho do impacto da extinção do MinC, outro equívoco desnecessário.

A favor do presidento destaque-se que, tendo dito e feito besteiras (no que tem sido, aliás, acompanhado pelos seus ministros), está demonstrando saber ouvir e correr atrás do prejuízo. Flávia Piovesan e Maria Silvia Bastos Marques são dois grandes nomes. Se continuar assim, o segundo escalão vai dar um banho no primeiro.

Aliás, já está dando.

Cora Rónai

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