Eu era do “Grupo Vertigem”, como meus colegas comunas chamavam os artistas, os angustiados, os românticos que sonhavam com uma revolução rápida, indolor, sem lutas sangrentas, sem portas de sindicatos, sem chateações de tarefeiros. A cartilha comunista tinha nomes para nós: hesitantes ou radicais, sectários ou pequenos burgueses, alienados ou provocadores, e o diabo a quatro. E eu, do meu canto neurótico, pensava: “Não ocorre a ninguém que há também invejosos, ignorantes, mentirosos, paranoicos e os sempre presentes ‘fdps’? Por que ninguém via o óbvio? Porque, caros amigos, para o comuna legítimo, escocês, o obvio é ‘de direita’”.
Contudo, pareciam-nos perfeitos os diagnósticos sobre a situação do país; os argumentos se iam organizando “dialeticamente”, enquanto a madrugada embranquecia. Até que chegava a hora fatal: o que fazer? E aí, ninguém sabia nada. É este o problema: como raciocinar sobre o Brasil com instrumentos tão precários, como podíamos achar que tudo se explicaria pela oposição entre oprimidos e opressores? Isso era nossa delícia, pois nos sentíamos os combatentes privilegiados dessa dualidade simplista.
Como era delicioso sentir-se importante, como era bom conspirar contra tudo, desde o papai “reacionário” até o imperialismo ianque. Tudo nos parecia claro para explicar a “realidade brasileira”: burguesia nacional, imperialismo, latifúndio, proletariado, campesinato, só. Todos tínhamos um desprezo calado pela democracia, um sólido horror à administração. Havia uma incompetência absoluta para concluir qualquer projeto. Ninguém tinha saco para administrar nada.
Qualquer argumento mais sofisticado, qualquer sombra de complexidade era traição. O bolchevique espetava o dedo na cara do intelectual e fuzilava: “O companheiro está sendo muito liberal, pequeno burguês, revisionista”. E o pequeno burguês revisionista ia vomitar atrás da porta. Celebrávamos derrotas: 35, 64, 68. E, a cada derrota, mais fé, mais orgulho de um martírio vão que levou ao suicídio da luta armada. E eu, pequeno burguês revisionista, olhava perplexo a gigantesca fé em uma missão impossível. Sabia que íamos quebrar a cara.
A verdade é que nunca houve bases concretas para o socialismo utópico que praticávamos.
E, a cada fracasso, a fé se reacendia. Os fracassos nos emprestavam uma aura de martírio que nos enobrecia. Era também uma mão na roda para justificar nossa ignorância, pois não precisávamos estudar nada profundamente, por sermos a “favor” do bem e da justiça. A desgraça dos miseráveis nos doía apenas como um problema existencial.
Achávamos que o país se salvaria só pela força das ideias. Um colega comuna me abraçou na noite de 31 de março de 64 e me berrou com jucunda ignorância: “Já vencemos o imperialismo norte-americano; agora só falta a burguesia nacional”. Eu exultei, com uma ponta de medo na alma. Horas depois, a UNE pegava fogo.
Nessa batalha terminológica de esquerda e direita, meu amigo cineasta Gustavo Dahl me disse uma frase sábia: “Esquerda é tudo que é profundo; direita é tudo que é superficial”. Creio que Marx disse algo como: “Para se chegar ao simples, há que atravessar a complexidade”. Essa pretensa esquerda que está saindo do poder é superficial, esquemática, ignorante dos avanços da ciência política, ignorante das buscas do mundo contemporâneo.
A velha revolução não rola mais, e assim tiveram que partir para uma nova e vergonhosa estratégia, como bem definiu o Baudrillard (que cito mais uma vez): “O comunismo, hoje desintegrado, tornou-se viral, capaz de contaminar o mundo inteiro, não através da ideologia nem de seu modelo de funcionamento, mas através de seu modelo de desfuncionamento e da desestruturação da vida social” – vide o novo eixo do mal da América Latina.
Alguém disse, e eu concordo, que a única revolução real a ser feita no Brasil é uma revolução liberal. Isso – movimentos e lutas que levem a destruição do bunker do Estado patrimonialista gigante que o PT adotou, em uma espécie de patrimonialismo “público”, chinês, de esquerda, sei lá – que nos quebrou. Para isso, cooptou os piores quistos de direita do país, de Sarney a Maluf. O que chamo de revolução liberal é a retomada pela sociedade civil de seus projetos e propósitos, porque o petismo, esse filhinho burro do leninismo, acha que a sociedade corre perigos e tem de ser tutelada... Por quem? Por eles, claro.
Aí, veio a crise pavorosa que armaram, não por acaso, mas por seus equívocos metodicamente planejados. E aí veio o impeachment. E aqueles que sempre odiaram a democracia passaram a falar nela com fervor infinito. Continuam nos prometendo um futuro e condenam um passado ditatorial, mas nada conseguem propor para o presente. Fazem-se grandes denúncias do passado autoritário para que não nos esqueçamos dos horrores. É claro que é importante punir e lembrar, sem dúvida. Mas democracia não pode ser definida apenas por ausência de ditadura, pelo que ela não é ou não foi.
Nossa democracia está em dificultosa construção, frágil, difícil de entender por um país que já começou excludente e em que a República nasceu de um golpe militar. Ainda bem que está saindo de cena essa religião laica, junto com o partido e suas teses utópicas que contaminam o país há décadas. Houve uma mutação histórica. Celebremos.
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