"Meu filho terminou o curso técnico". "Meu filho fazia inglês". "Meu filho era estudante". "Meu filho estava comemorando o primeiro salário no emprego".
Ao acompanhar o noticiário sobre os cinco jovens negros mortos por policiais em Costa Barros no fim de semana, reencontro frases que ouvi tantas vezes, nas bocas de outras mães e outros pais que perderam seus filhos de modo semelhante.
"Meu filho era tão bom, era trabalhador, estudava...", costumava dizer Euristeia Azevedo sobre o filho William Keller Azevedo, assassinado em outubro de 1998 no episódio que ficou conhecido como Chacina do Maracanã.
Entrevistei-a em reportagens sobre mães que cobravam justiça para mortes violentas no Rio. Eu estava num plantão de sábado quando, na ronda telefônica para hospitais e delegacias, soube das mortes. Na estatística, era mais um caso. Para Euristeia, era o filho dela, um filho bom, morto aos 24 anos.
Noutro plantão de sábado, em maio de 1999, mataram Rodrigo Marques da Silva, de 15 anos, numa operação da PM no morro da Coroa. A mãe, Edilamar da Silva, transformou-se em ativista contra a violência policial.
"Já estão até dizendo que acharam uma arma com meu filho", ela dizia. "Não quero dinheiro do Estado, quero que tirem essa calúnia. Meu garoto não era traficante".
Esqueci de lhe dizer que, se fosse, o filho teria de ser preso e julgado, não assassinado.
Em agosto e setembro de 2000, grávida, persegui pelo Rio o então relator da ONU contra a tortura, Nigel Rodley, até ele me confirmar o que eu já sabia: ao visitar um presídio do Rio, Rodley encontrou detentos que haviam sido espancados.
Sua grande crítica era ao fato de a polícia investigar a polícia: "Há um problema quando a iniciativa da investigação fica a cargo da polícia ou quando só a polícia tem autorização para investigar, principalmente quando é a polícia que está sendo investigada".
Lembrei-me de 'sir' Nigel ao observar como demorou a cair o comandante do 41º Batalhão da PM, ao qual pertencem os policiais que deram ao menos 50 tiros no Palio em que estavam os cinco jovens de Costa Barros.
Era desse mesmo batalhão o sargento que, em outubro, atirou em dois mototaxistas ao confundir com uma arma o macaco hidráulico que um deles carregava. Os dois rapazes morreram.
Outra relatora da ONU, Asma Jahangir, especialista em execuções sumárias, impressionou-se com os relatos de violência policial no Estado ao visitar o Rio em outubro de 2003.
Foi nessa época que conheci Márcia de Oliveira Silva Jacinto, mãe de Henri Gomes de Siqueira, morto aos 16 anos numa ação da PM no Lins. O rapaz tinha morrido já fazia quase um ano, e Márcia contava que ainda ouvia um "Mãe, cheguei!", quando entrava em casa.
"Meu filho levou um tiro no peito. Disseram que ele tinha um revólver e maconha, mas sei que era inocente".
Recém-chegada ao Rio, desde 1994 eu mergulhara na cidade pós-chacinas da Candelária e de Vigário Geral, ambas do ano anterior. Cobri a guerra entre traficantes e os assassinatos cometidos por policiais.
Em outubro de 1994, uma operação da Polícia Civil na favela Nova Brasília acumulou 13 mortos. Só três tinham antecedentes criminais, no mínimo dez levaram tiros na cabeça.
Nova operação policial, em maio de 1995, matou 14 na mesma favela. Na casa onde morreram dez das 14 vítimas, vi sangue escorrendo pelo chão e pelas escadas, paredes vermelhas de sangue, macabramente salpicadas de massa encefálica.
"Eles pediam para não morrer, diziam que iam se entregar", segredou um morador.
Ecoam as vozes de mães, pais, irmãos e amigos de muitas épocas: era inocente; estudava inglês; fez curso técnico; era um bom garoto. Ouvi e ainda ouço justificativas e alegações, em defesa da honra dos filhos mortos.
Nas comunidades pobres, diante da escola que não atrai, à espera do emprego que custa a aparecer e sem chance frente a uma polícia que mata, os jovens convivem com a marginalidade. Muitos são tragados por ela. Alguns margeiam a delinquência, experimentando pequenos delitos. Outros, a maioria, ganham a vida honestamente.
As famílias sabem disso, e por isso o desespero de pais e mães que se sentem obrigados a provar a inocência dos filhos, exibindo o recibo do curso quase concluído, a carteira de trabalho recém-assinada, a apostila de inglês...
É digna e comovente a atitude das famílias. Porém, mesmo se fossem criminosos, os jovens de Costa Barros não podiam ter sido fuzilados. Estavam desarmados, não ameaçaram os policiais. Tinham de 16 a 25 anos.
Mas aceitamos, publicamos, seguimos, acostumados que estamos a uma argumentação torta, segundo a qual famílias devastadas pela tragédia da morte de um jovem é que têm que dar explicações.
Ao acompanhar o noticiário sobre os cinco jovens negros mortos por policiais em Costa Barros no fim de semana, reencontro frases que ouvi tantas vezes, nas bocas de outras mães e outros pais que perderam seus filhos de modo semelhante.
"Meu filho era tão bom, era trabalhador, estudava...", costumava dizer Euristeia Azevedo sobre o filho William Keller Azevedo, assassinado em outubro de 1998 no episódio que ficou conhecido como Chacina do Maracanã.
Entrevistei-a em reportagens sobre mães que cobravam justiça para mortes violentas no Rio. Eu estava num plantão de sábado quando, na ronda telefônica para hospitais e delegacias, soube das mortes. Na estatística, era mais um caso. Para Euristeia, era o filho dela, um filho bom, morto aos 24 anos.
Noutro plantão de sábado, em maio de 1999, mataram Rodrigo Marques da Silva, de 15 anos, numa operação da PM no morro da Coroa. A mãe, Edilamar da Silva, transformou-se em ativista contra a violência policial.
"Já estão até dizendo que acharam uma arma com meu filho", ela dizia. "Não quero dinheiro do Estado, quero que tirem essa calúnia. Meu garoto não era traficante".
Esqueci de lhe dizer que, se fosse, o filho teria de ser preso e julgado, não assassinado.
Em agosto e setembro de 2000, grávida, persegui pelo Rio o então relator da ONU contra a tortura, Nigel Rodley, até ele me confirmar o que eu já sabia: ao visitar um presídio do Rio, Rodley encontrou detentos que haviam sido espancados.
Sua grande crítica era ao fato de a polícia investigar a polícia: "Há um problema quando a iniciativa da investigação fica a cargo da polícia ou quando só a polícia tem autorização para investigar, principalmente quando é a polícia que está sendo investigada".
Lembrei-me de 'sir' Nigel ao observar como demorou a cair o comandante do 41º Batalhão da PM, ao qual pertencem os policiais que deram ao menos 50 tiros no Palio em que estavam os cinco jovens de Costa Barros.
Era desse mesmo batalhão o sargento que, em outubro, atirou em dois mototaxistas ao confundir com uma arma o macaco hidráulico que um deles carregava. Os dois rapazes morreram.
Outra relatora da ONU, Asma Jahangir, especialista em execuções sumárias, impressionou-se com os relatos de violência policial no Estado ao visitar o Rio em outubro de 2003.
Foi nessa época que conheci Márcia de Oliveira Silva Jacinto, mãe de Henri Gomes de Siqueira, morto aos 16 anos numa ação da PM no Lins. O rapaz tinha morrido já fazia quase um ano, e Márcia contava que ainda ouvia um "Mãe, cheguei!", quando entrava em casa.
"Meu filho levou um tiro no peito. Disseram que ele tinha um revólver e maconha, mas sei que era inocente".
Recém-chegada ao Rio, desde 1994 eu mergulhara na cidade pós-chacinas da Candelária e de Vigário Geral, ambas do ano anterior. Cobri a guerra entre traficantes e os assassinatos cometidos por policiais.
Em outubro de 1994, uma operação da Polícia Civil na favela Nova Brasília acumulou 13 mortos. Só três tinham antecedentes criminais, no mínimo dez levaram tiros na cabeça.
Nova operação policial, em maio de 1995, matou 14 na mesma favela. Na casa onde morreram dez das 14 vítimas, vi sangue escorrendo pelo chão e pelas escadas, paredes vermelhas de sangue, macabramente salpicadas de massa encefálica.
"Eles pediam para não morrer, diziam que iam se entregar", segredou um morador.
Ecoam as vozes de mães, pais, irmãos e amigos de muitas épocas: era inocente; estudava inglês; fez curso técnico; era um bom garoto. Ouvi e ainda ouço justificativas e alegações, em defesa da honra dos filhos mortos.
Nas comunidades pobres, diante da escola que não atrai, à espera do emprego que custa a aparecer e sem chance frente a uma polícia que mata, os jovens convivem com a marginalidade. Muitos são tragados por ela. Alguns margeiam a delinquência, experimentando pequenos delitos. Outros, a maioria, ganham a vida honestamente.
As famílias sabem disso, e por isso o desespero de pais e mães que se sentem obrigados a provar a inocência dos filhos, exibindo o recibo do curso quase concluído, a carteira de trabalho recém-assinada, a apostila de inglês...
É digna e comovente a atitude das famílias. Porém, mesmo se fossem criminosos, os jovens de Costa Barros não podiam ter sido fuzilados. Estavam desarmados, não ameaçaram os policiais. Tinham de 16 a 25 anos.
Mas aceitamos, publicamos, seguimos, acostumados que estamos a uma argumentação torta, segundo a qual famílias devastadas pela tragédia da morte de um jovem é que têm que dar explicações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário