segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O mundo entre aspas

Após visitar a Argentina em 1980, o romancista V. S. Naipaul escreveu: “Na Argentina, muitas palavras diminuíram seu significado: general, artista, jornalista, historiador, professor, universidade, diretor, executivo, industrial, aristocrata, biblioteca, museu, zoológico; tantas palavras precisam estar entre aspas”.

Essa é uma metáfora brilhante, que transmite muito bem uma complexa realidade na qual o que parece com frequência não é. Mas as aspas às quais se refere esse ganhador do Nobel de Literatura não são só um fenômeno argentino do século passado. Elas também captam perfeitamente bem o mundo do século XXI. É um mundo cheio de “escolas” que não educam, “hospitais” que não curam, “policiais” que com frequência são criminosos, “empresas privadas” que só existem graças ao Estado ou “Ministérios de Defesa” que atacam os seus cidadãos. Vivemos em um universo infestado de instituições que cumprem apenas muito parcialmente os objetivos que justificam sua existência. E de situações deliberadamente concebidas para enganar os incautos.

Há alguns dias, por exemplo, o Governo da Rússia anunciou que mandaria “voluntários” para lutar na Síria (as aspas não são minhas; assim titulou o The New York Times). Esses “voluntários” russos na Síria são suspeitamente parecidos com os “militantes nacionalistas pró-russos” que invadiram a Crimeia e que continuam em guerra contra a Ucrânia. É que tanto os “voluntários” russos na Síria como os militantes que atacam a Ucrânia são, na verdade, militares russos ou mercenários na folha de pagamentos de Moscou.

Chega a parecer que o Kremlin desenvolveu uma forte preferência por usar “organizações não governamentais - ONGs” (assim, entre aspas) para alcançar objetivos militares e políticos. O NASHI, por exemplo, é um “movimento” de jovens russos que se declara “democrático, antifascista e contra o capitalismo oligárquico”. Tudo fica entre aspas porque essa ONG na verdade é uma entidade promovida, organizada e patrocinada pelo Governo russo. Que não é, por sua vez, o único a usar as chamadas ONGOGs: Organizações Não Governamentais Organizadas e Controladas por Governos. Já em 2007 escrevi: “A Federação de Assuntos da Mulher de Myanmar é uma ONGOG. E a Organização de Direitos Humanos do Sudão. A Associação de Organizações Não Comerciais e Não Governamentais do Quirguistão, assim como a Chongryon, Associação Geral de Residentes Coreanos no Japão, são ONGOGs. Essa é uma tendência mundial, cada vez mais difundida: governos que financiam e controlam organizações não governamentais (ONGs), muitas vezes às escondidas”.


Vivemos num universo cheio de instituições e situações deliberadamente concebidas para enganar os incautos

Em países com Governos autocráticos ou democracias não liberais também estão proliferando os “meios de comunicação privados e independentes” que não verdade não o são. Emissoras de rádio, canais de televisão, jornais e revistas criados ou comprados por “investidores privados” e que são nominalmente independentes, mas editorialmente escravos do Governo que clandestinamente os financia e controla.

Nesses países, o presidente, ditador ou chefe de Estado também costuma exercer um controle clandestino, férreo, sobre “senadores”, “deputados”, “promotores”, “juízes” e “tribunais eleitorais” que se fazem passar por “árbitros imparciais” de “eleições democráticas”, as quais com frequência são manipuladas e fraudulentas. Por isso, na Rússia, no Irã, na Venezuela e na Hungria, por exemplo, os conceitos de “democracia”, “separação de poderes” e “eleições” precisam das aspas que nos alertam sobre o seu significado diminuído.

E não são só os países. O mundo das organizações internacionais está inundado de aspas. Você já ouviu falar do Conselho de Direitos Humanos da ONU? Sua missão é “promover e proteger os direitos humanos no mundo”. Seus membros? Pois, entre outros, Cuba, Congo, China, Cazaquistão, Rússia, Venezuela e Vietnã. Outro ilustrativo exemplo de como as aspas se tornaram indispensáveis é a “Carta Democrática” da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em 2001, com grande pompa e emoção, os países democráticos da América Latina decidiram que o “fortalecimento e preservação da institucionalidade democrática” era uma prioridade e que, se em algum país membro da OEA ocorresse uma ruptura ou alteração institucional que afetasse gravemente a ordem democrática, isso constituiria “um obstáculo insuperável” à permanência desse Governo na instituição. Não foi assim. Não só a OEA não agiu quando houve flagrantes violações à “ordem democrática” em diversos países da região, como também tem a séria intenção de incorporar outro paladino da democracia: Cuba.

Mas o país que possivelmente mais precisa de aspas para ser entendido é a China. A China do sistema “comunista” que se tornou um pilar fundamental da economia capitalista do mundo. E, para dar só mais um exemplo, a China que agora nos obriga a colocar aspas no conceito de “ilha”. Tomou algumas rochas numa zona com soberania muito disputada, o mar do Sul da China, e vem fazendo-as “crescer”. Assim, em vez de serem inabitadas e inabitáveis rochas no oceano, agora são pequenas “ilhas” onde Pequim já instalou bases navais e aéreas.

Será o século XXI o “século das aspas”?

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