Essa doutrina, que erroneamente enxerga o comércio internacional como um jogo de soma zero, onde o ganho de um país representa, necessariamente, a perda de outro, é o que realmente guia a postura protecionista do presidente. Obsessivamente focado na obtenção de superávits comerciais a qualquer custo, Trump não hesitaria em renovar sua ofensiva contra acordos multilaterais, impondo novas barreiras tarifárias e prometendo fortalecer a indústria doméstica através de um isolacionismo convenientemente calculado.
Essa estratégia, no entanto, mostra-se anacrônica diante da interdependência que caracteriza a economia global contemporânea. Ignorar as complexidades das cadeias de suprimentos, comprometer a lógica cooperativa do comércio internacional e reduzir a política externa a uma extensão da balança comercial são práticas que tensionam não apenas as relações comerciais dos EUA, mas também sua legitimidade como potência articuladora da ordem econômica global. A pergunta que se impõe, portanto, é: quem ainda acredita que o mundo pode voltar a caber nas fórmulas simplistas de um mercantilismo de ocasião?
O pano de fundo da nova narrativa trumpista é uma economia em transição turbulenta. A inflação, com taxas próximas a 3% em 2024, teima em desafiar os mecanismos convencionais do Federal Reserve, que tem como meta 2%1. O endividamento interno também atinge patamares históricos, superando US$36 trilhões em 2024 e representando mais de 120% do PIB2. Além disso, os efeitos de uma desindustrialização prolongada continuam a corroer as bases do chamado “American Dream“. Segundo dados sobre a economia dos EUA, o setor manufatureiro diminuiu sua participação no PIB de cerca de 25% no pós-guerra para aproximadamente 11% atualmente, e sua fatia no emprego total caiu de aproximadamente 30% para menos de 10%3.
As estatísticas também mostram uma enorme concentração de riqueza na economia estadunidense. Nas últimas décadas, a desigualdade de renda e riqueza aumentou significativamente, com dados indicando que o 0,1% no topo da pirâmide social detém nada menos do que 13,8% da riqueza total dos EUA – um nível recorde que, quatro anos antes, era de 13%4.
Trump se aproveita dessas fissuras para resgatar o discurso da “América esquecida”, exatamente a mesma retórica que o alçou ao poder em 2016. Contudo, sua proposta de solução não passa de um revivalismo ideológico que combina nostalgia econômica, agressividade retórica e políticas que, na prática, pouco ou nada alteram a estrutura do sistema que marginaliza boa parte da população.
O coração econômico da agenda de Donald Trump reside em sua tentativa anacrônica de ressuscitar uma lógica mercantilista no século XXI. Ao eleger o déficit comercial como símbolo da decadência americana e ao apontar a China e o México como os principais vilões, Trump construiu uma retórica agressiva contra o livre comércio que lhe rendeu forte adesão em estados desindustrializados. Sob o lema do “America First“, propôs tarifas e sanções com o objetivo declarado de “proteger a indústria americana”, embora, na prática, tenha promovido uma guerra comercial de resultados ambíguos, marcada mais por efeitos colaterais do que por ganhos estruturais.
De fato, tarifas significativas foram aplicadas sobre o aço e o alumínio (25% e 10%, respectivamente), além de uma vasta gama de produtos chineses. Mas, as efetividades dessas medidas foram mitigadas, muitas foram revertidas, atenuadas ou mesmo ignoradas em sua aplicação. Como demonstra Vasconcelos (2019), O discurso protecionista, nesse cenário, serviu mais como um mecanismo de mobilização política e de apelo à base eleitoral do que como um instrumento econômico consistente para reverter a desindustrialização. Além disso, o aumento de preços provocado pelas tarifas não só gerou um desarranjo significativo nas cadeias de produção globais, mas também penalizou diretamente o consumidor estadunidense. Foram eles que, ironicamente, arcaram com os custos repassados pelas empresas importadoras, uma contradição cruel para um governo que prometia devolver prosperidade ao “povo trabalhador”5.
Na realidade, o protecionismo de Trump funcionou como cortina de fumaça para ocultar a ausência de um projeto industrial estruturado e de longo prazo. Não houve investimento coordenado em inovação tecnológica, nem esforço sério de requalificação da força de trabalho. Em vez disso, o governo reforçou sua dependência do complexo militar-industrial e da lógica rentista de Wall Street o que, como argumenta Fiori (2018), é coerente com a forma histórica de acumulação de capital nos EUA. A promessa de reconstruir a base industrial americana converteu-se em peça de marketing político, sem sustentação técnica ou orçamentária. Segundo Noam Chomsky (2020), essa contradição é estrutural ao trumpismo, que (…) “mobiliza afetos de classe sem jamais tocar nos fundamentos materiais do poder econômico”.
Dessa forma, a retórica do “America First“, ao invés de inaugurar uma nova era de soberania produtiva, encobriu a ausência de um projeto industrial robusto. Baseada no fetiche das tarifas e no mito da autossuficiência nacional, a retórica mercantilista de Trump operou como uma cortina de fumaça, pois enquanto promovia o antagonismo externo como forma de coesão interna, perpetuava as desigualdades estruturais e aprofundava o esvaziamento do Estado como planejador e investidor estratégico.
Embora o foco retórico de Trump tenha sido a China, o Brasil também se tornou alvo de suas novas medidas tarifárias. Em 9 de julho, Trump anunciou a aplicação de uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros a partir de 1º de agosto. Em suas justificativas, alegou desequilíbrios tarifários e não-tarifários e criticou decisões do STF sobre o ex-presidente Bolsonaro.
No entanto, a justificativa esbarra em dados concretos, uma vez que os EUA mantêm superávit comercial com o Brasil, que chegou a US$ 1,7 bilhão no primeiro semestre de 2025, um crescimento de 500% em relação a 20246. A questão, portanto, não é econômica, mas geopolítica.
Diante da afirmação, cabe a seguinte pergunta: Quais os verdadeiros motivos da tarifação de Trump sobre o Brasil?
As tarifas impostas ao Brasil por Donald Trump vão além do discurso nacionalista: operam como instrumento de contenção geopolítica frente ao avanço chinês na América Latina.
Em maio de 2025, o artigo “A geopolítica dos bilhões: Brasil, China e a nova ordem global”, chama atenção para o crescimento expressivo das relações bilaterais entre Brasil e China, especialmente a partir de um novo aporte de R$ 27 bilhões (cerca de US$ 5,2 bilhões) destinados a setores estratégicos da economia brasileira. O objetivo não era apenas econômico, mas geopolítico: consolidar o Brasil como protagonista na cooperação entre os países do Sul Global.
Segundo Alfredo, esses investimentos devem ser interpretados à luz das transformações estruturais em curso na geoeconomia mundial e da ascensão da China como ator central na redefinição da ordem internacional. No contexto da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), lançada em 2013, Pequim não apenas amplia sua presença no Sudeste Asiático, na África e no Leste Europeu, mas avança decisivamente sobre o Sul Global, financiando obras de infraestrutura, controlando ativos estratégicos e promovendo alianças energéticas e tecnológicas.
As tarifas impostas ao Brasil devem ser compreendidas como parte de uma reação estratégica à crescente presença chinesa na América Latina. Com essa medida, Trump sinaliza claramente que os EUA não admitem concorrência ou autonomia na periferia do sistema, especialmente quando essa autonomia se articula com a potência rival chinesa, buscando resguardar interesses em uma região historicamente vista como zona de influência exclusiva dos Estados Unidos.
Sobrinho (2025) aponta que “enquanto os EUA erguem barreiras comerciais contra aliados na América Latina, (…) a China avança sobre o continente investindo bilhões em infraestrutura para intensificar sua presença na região”.
O “tarifaço” sobre as exportações brasileiras deve, portanto, ser compreendido como parte de uma guerra geopolítica em curso, na qual a economia funciona como campo de batalha e o protecionismo atua como pretexto. A disputa por hegemonia na América Latina não se dá mais apenas por meio de golpes, bases militares ou fundos de investimento: ela agora passa pelo controle de fluxos logísticos, cadeias produtivas, tecnologias estratégicas e infraestrutura crítica. Ao punir o Brasil por estreitar laços com a China, Washington envia uma mensagem clara não aos mercados, mas aos governos do Sul Global: quem buscar autonomia, pagará o preço.
Ao contrário das grandes reconfigurações lideradas pelos EUA no século XX, como o pragmatismo do New Deal ou a reconstrução do pós-guerra, a agenda internacional de Trump é marcada por improvisação, personalismo e um notável vazio estratégico. Sua retórica aguerrida, frequentemente direcionada contra a China, o Irã e até mesmo aliados históricos da OTAN, não se traduziu em uma hegemonia renovada, mas sim instabilidade geopolítica e uma considerável perda de legitimidade global.
A promessa de “America First” revelou-se, na prática, uma dolorosa “America Alone”. Ao abandonar acordos multilaterais cruciais como o Acordo de Paris sobre o clima, e ao enfraquecer deliberadamente instituições internacionais como a OMC e a OMS, o trumpismo expôs sua natureza unilateralista, descolada de qualquer projeto coerente de reorganização da ordem global. Taís em seu artigo “O retorno do mercantilismo na América de Donald Trump”, aponta que o trumpismo “reeditou a lógica mercantilista sem oferecer as soluções de longo prazo que o próprio mercantilismo clássico buscava, como o fortalecimento do Estado e a construção de uma base produtiva sólida”. O resultado é que sua estratégia contribuiu mais para a corrosão da ordem liberal internacional, criada no pós-guerra e sustentada por Washington, do que para a formulação de uma nova arquitetura geopolítica.
Em vez de recolocar os Estados Unidos no centro do tabuleiro mundial como potência incontestável, a política isolacionista de Trump gerou não apenas desordem externa, mas também um colapso interno via populismo reacionário que minou consensos democráticos como, o enfraquecimento da imprensa, do sistema eleitoral e nas instituições judiciais. Ao mesmo tempo, seus estragos diplomáticos desestabilizaram aliados históricos e estratégicos, revelando um império em declínio, mais reativo do que reformulador.
A agenda imperialista de Donald Trump configura um edifício erguido sobre ruínas: sejam elas econômicas, sociais ou simbólicas. Promete restaurar uma grandeza americana, mas sem apresentar caminhos sustentáveis para tal feito. Invoca um protecionismo vazio, incapaz de romper com a lógica neoliberal que ele próprio, por outras vias, acaba por reforçar. Trata-se, em essência, de uma farsa ideológica que se sustenta muito mais pelo ressentimento social, mobilizado em forma de medo, hostilidade e recuo civilizatório do que por um projeto factível ou pela própria realidade econômica.
A verdadeira questão que se impõe, portanto, não é meramente quem ainda deposita sua fé em Trump, mas sim o que a persistência e o avanço dessa crença revelam sobre os limites da democracia liberal e a profunda crise do projeto imperial americano em pleno século XXI.

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