Instituições politicamente corretas e engajadas em causas nobres, depois de constituídas, devem se preocupar, em primeiro lugar, em garantir a sua própria existência – e, se preciso for, vender a sua alma. Ainda vão usar, como álibi, os projetos e as comunidades beneficiadas pelo trabalho que exercem. Certa vez, fui procurar uma dessas instituições em Paris e o senhor que estava me atendendo parecia não compreender algo muito trivial. A certa altura fiquei irritado e perguntei se ele e as demais pessoas que trabalhavam na instituição eram de esquerda, ao que ele respondeu, sem rodeios, que eram todos de esquerda sim, mas quem estava financiando a instituição não.
Em São Paulo, eu estava no banco da frente do ônibus, no lado oposto ao motorista. Quando passávamos em frente ao complexo de saúde da Avenida Doutor Arnaldo, que abriga um posto de saúde, o Hospital das Clínicas, as faculdades de medicina e de saúde pública, o Incor, Emílio Ribas etc., uma senhora perguntou ao motorista onde ficava uma determinada unidade e ele respondeu que não sabia. A senhora estava ao meu lado, eu não havia conseguido ouvir qual das unidades ela estava procurando e perguntei “do que a senhora está precisando?” Ela olhou fixamente para mim e respondeu rispidamente, “de dinheiro!” Fiquei atônito, engoli seco e perguntei, “e de que mais?” Com a mesma rispidez, ela disse, “de saúde!”
Bem, ela parecia não ser muito rica e, para ela, dinheiro certamente não era um problema, seria a “solução”. Mas o Yacov, quando se jogou no “mercado”, disse boquiaberto, “pai, as pessoas só falam e só pensam em dinheiro, tanto os pobres quanto os ricos!”
Balzac imortalizou Monsieur Grandet, que presenteava anualmente sua filha com uma moeda de ouro, só para ela adquirir o gostinho pela avareza. Fyodor Dostoevsky, por sua vez, enalteceu a bela e desvirtuada Nastasya Filippovna, que arremessou à lareira os cem mil rublos arrecadados a seu pedido pelo apaixonado pretendente Rogozhin; e disse ao calculista pretendente Ganya, que estava interessado em seu dote, que ele poderia ficar com o dinheiro, desde que levasse as mãos ao fogo.
Quando digo que dinheiro não é problema, as pessoas normalmente ficam de olhos arregalados e com o queixo caído. Na época em que eu era coordenador do Programa de Economia Política da PUC-SP, até a gráfica e a lanchonete resolveram financiar um empreendimento nosso com os alunos. Nunca saí atrás de dinheiro, mas que o dinheiro chegava, chegava. Eu tinha conhecimento de que as pessoas na universidade diziam que eu é que sabia qual era o caminho das pedras, que elas entendiam como o caminho para o dinheiro, o paraíso terrestre. Assim como o prazer, os relacionamentos e a verdade, quanto mais se procura pelo “dindim”, mais ele se esconde.
Uma vez chamei uma reunião com o título “como gastar 50 mil dólares sem fazer força”. Um professor, que não fazia parte da nossa equipe de trabalho, atraído pelo título, entrou no meio e saiu antes da reunião acabar – então não ouviu nem como o dinheiro chegou a nós, nem o que resolvemos fazer com ele. Mesmo assim, o tal do professor foi denunciar o caso à reitoria da universidade, dizendo que o perdulário coordenador estava pondo dinheiro da universidade a perder. A reitoria solicitou à pró-reitoria de pós-graduação a intervenção no nosso programa. Mas a pró-reitoria, que sabia que era um dinheiro que havíamos recebido por conta de um projeto encaminhado e aprovado pela CAPES, esclareceu o caso à reitoria e os ânimos amainaram.
Na escravidão, por meio de violência física, um ser humano assume direitos de propriedade sobre outro ser humano, enquanto coisa. A escravidão no Brasil durou quase 400 anos; meu pai foi escravo do Terceiro Reich entre 1940 e 1945.
Como equivalente geral, o dinheiro compra tudo, exerce poder e dissimula a violência. Uma pessoa, quando compra o seu serviço, acha que está comprando a você enquanto pessoa, ou melhor, enquanto coisa – “afinal, eu estou pagando”. Gustav Jung escreveu que atendeu uma senhora muito rica que estapeava os seus empregados e estava prestes a estapeá-lo também, dado que ela estava pagando pelos seus serviços, não estava? O cliente sempre tem razão!
Numa reunião com militantes de esquerda da classe média, eu disse que empregadas domésticas eram escravas. As pessoas, meio embaraçadas, justificaram, “não são escravas, pois estamos pagando pelos seus serviços (além de estarmos propiciando emprego)”. Mas, quando você compra os serviços de um empregado doméstico, você passa a dispor dele para o que der e vier. O seriado Malu Mulher foi comprado pela tevê inglesa, mas as feministas não conseguiam entender se aquele programa com a Regina Duarte e sua empregada doméstica era um seriado engajado ou uma sátira ao movimento feminista. A tevê inglesa passou uma das séries, mas não comprou as demais. Sueli Carneiro me dizia, “as brancas fazem as pretas de mulher”, reproduzem o papel de macho em relação às mulheres negras.
A escravidão de africanos no Brasil foi formalmente abolida em 1888, mas nem todo mundo ficou sabendo disso. Um casal de amigos de classe média foi morar no sul da Bahia e, quando lá chegou, a casa já estava equipada com empregada doméstica, que acumulava a função de cozinheira, e com menino de recado, pau para toda obra. Os escravos já vieram com a casa, no melhor dos estilos coloniais.
O capitalismo industrial generalizou a mercadoria, que, soberana, impõe um ritmo frenético à atividade econômica. A mercadoria, enquanto coisa, adquire um poder sobrenatural, transforma-se em um fetiche que se sobrepõe às relações sociais. O sistema leva os produtores a buscar inovações técnicas que possam baratear os seus custos, a criar novas mercadorias, novas necessidades, leva-os a lesar ao máximo os trabalhadores a seu serviço, burlar o fisco e correr riscos. E o dinheiro, enquanto equivalente geral que permite acesso ao mundo mágico das coisas, encarna o fetiche da mercadoria em sua forma acabada.
De acordo com Nelson Rodrigues, dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro. Quantas pessoas não se apaixonam por dinheiro?
Samuel Kilsztajn

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