domingo, 29 de setembro de 2024

Quebrando a lei da selva

No decorrer da História, para a maior parte dos seres humanos a guerra era algo certo, garantido, enquanto a paz era um estado temporário e precário. As relações internacionais eram governadas pela Lei da Selva, segundo a qual, mesmo que duas políticas convivessem em paz, a guerra permanecia como uma opção. Por exemplo, embora em 1913 houvesse paz entre a Alemanha e a França, era óbvio que uma poderia cair no pescoço da outra em 1914. Quando políticos, generais, homens de negócios e cidadãos comuns faziam planos para o futuro, sempre deixavam em aberto a possibilidade de uma guerra. Da Idade da Pedra à era do vapor, do Ártico ao Saara, cada pessoa na Terra sabia que a qualquer momento os vizinhos poderiam invadir seu território, derrotar seu exército, chacinar seu povo e ocupar sua terra.

Durante a segunda metade do século XX, a Lei da Selva finalmente foi quebrada, se é que não foi suspensa. Na maior parte das regiões, as guerras eram mais raras. Enquanto nas antigas sociedades agrícolas a violência humana foi a causa de 15% de todas as mortes, durante o século XX a violência provocou apenas 5% dos óbitos, e no início do século XXI foi responsável por cerca de 1% da mortalidade global. Em 2012, aproximadamente 56 milhões de pessoas morreram no mundo inteiro; 620 mil morreram em razão da violência humana (guerras mataram 120 mil pessoas, o crime matou outras 500 mil). Em contrapartida, 800 mil cometeram suicídio, e 1,5 milhão morreram de diabetes. O açúcar é mais perigoso do que a pólvora.

Mais importante ainda, é perceber que, para um segmento cada vez maior da humanidade, a guerra se tornou inconcebível. Pela primeira vez na História, quando governos, corporações e indivíduos privados avaliam o futuro imediato, muitos não pensam na guerra como um acontecimento provável. As armas nucleares tornaram uma guerra entre superpotências um ato louco de suicídio coletivo e com isso forçaram as nações mais poderosas da Terra a encontrar meios alternativos e pacíficos de resolver conflitos. Simultaneamente, a economia global abandonou as bases materiais para se assentar no conhecimento. Antes, as principais fontes de riqueza eram os recursos materiais, como minas de ouro, campos de trigo e poços de petróleo. Hoje, a principal fonte de riqueza é o conhecimento. E, embora se possam conquistar poços de petróleo na guerra, não se pode conquistar conhecimento dessa maneira. Desde que o conhecimento se tornou o mais importante recurso econômico, a rentabilidade da guerra declinou e as guerras tornaram-se cada vez mais restritas àquelas regiões do mundo — como o Oriente Médio e a África Central — nas quais as economias ainda são antiquadas, baseadas em recursos materiais.


Em 1998, fazia sentido para Ruanda tomar e pilhar as minas de coltando vizinho Congo porque era grande a demanda por esse mineral metálico para a fabricação de smartphones e laptops, e o Congo contava com 80% das reservas mundiais. Ruanda ganhava 240 milhões de dólares por ano com o coltan pilhado. Para um país pobre, como é o caso de Ruanda, era muito dinheiro. 24 Em contrapartida, não faria sentido a China invadir a Califórnia para tomar o Vale do Silício, pois, mesmo que os chineses pudessem ser bem-sucedidos no campo de batalha, não existem minas de silício para pilhar no Vale do Silício. Em vez disso, os chineses ganharam bilhões de dólares como resultado de sua cooperação com gigantes da alta tecnologia, tais como Apple e Microsoft, comprando os softwares dessas empresas e fabricando produtos para elas. O que Ruanda ganhou num ano inteiro de pilhagem do coltan congolês, os chineses ganharam num único dia de comércio pacífico.

Em consequência, a palavra “paz” adquiriu um novo significado. As gerações anteriores pensavam na paz como ausência temporária de guerra. Hoje a vislumbramos como a implausibilidade da guerra. Em 1913, quando se falava que havia paz entre a França e a Alemanha, o que se queria dizer era que, “no presente, não há uma guerra entre esses países, mas ninguém sabe o que nos aguarda no próximo ano”. Quando hoje se afirma que há paz entre a França e a Alemanha, sabe-se que é inconcebível, em quaisquer circunstâncias previsíveis, eclodir uma guerra entre essas duas nações. Uma paz assim prevalece não apenas entre a França e a Alemanha, mas entre a maioria (conquanto não todos) dos países. Não existe um cenário para que uma guerra séria ecloda no ano que vem entre a Alemanha e a Polônia, entre a Indonésia e as Filipinas, ou entre o Brasil e o Uruguai.

Essa nova paz não é apenas uma fantasia hippie. Governos sedentos de poder e corporações gananciosas também contam com ela. Quando a Mercedes-Benz planeja suas estratégias de vendas na Europa Oriental, descarta a possibilidade de que a Alemanha conquiste a Polônia. Uma corporação que importa mão de obra barata das Filipinas não está preocupada com a possibilidade de que a Indonésia invada as Filipinas no ano que vem. Quando o governo brasileiro se reúne para discutir o orçamento do próximo ano, é inimaginável que o ministro da Defesa do país se levante de sua cadeira, dê um soco na mesa e grite: “Esperem um momento! E se quisermos invadir e conquistar o Uruguai? Vocês não levaram isso em consideração. Temos de reservar 5 bilhões de dólares para financiar essa conquista”. Claro que há uns poucos lugares nos quais o ministro da Defesa ainda fala coisas do tipo, assim como há regiões em que a Nova Paz não conseguiu assentar raízes. Falo disso com propriedade, pois vivo em uma dessas regiões. Mas estas são exceções.

Não há garantia, é claro, de que a Nova Paz se mantenha indefinidamente. Assim como as armas nucleares a princípio a tornaram possível, da mesma forma desenvolvimentos tecnológicos podem criar um cenário para formas inéditas de guerra. Em particular, uma guerra cibernética pode desestabilizar o mundo ao conceder a pequenos países e grupos não estatais a capacidade de lutar com eficácia contra superpotências. Quando os Estados Unidos combateram o Iraque em 2003, levaram o caos a Bagdá e a Mossul, mas nem uma única bomba foi lançada sobre Los Angeles ou Chicago. No futuro, no entanto, um país como a Coreia do Norte, ou o Irã, poderia utilizar bombas lógicas para interromper a transmissão de energia na Califórnia, explodir refinarias no Texas e fazer trens colidirem em Michigan (“bombas lógicas” são códigos de software maliciosos plantados em tempos de paz e operados à distância. É altamente provável que esses códigos já tenham sido contaminados em redes que controlam instalações vitais de infraestrutura nos Estados Unidos e em muitos outros países).

Contudo, não se deve confundir capacidade com motivação. Embora introduza novos meios de destruição, a guerra cibernética não cria necessariamente incentivos para que sejam usados. Durante os últimos setenta anos a humanidade quebrou não apenas a Lei da Selva, como também a Lei de Tchékhov. É famosa a declaração de Anton Tchékhov de que, se uma arma aparece no primeiro ato de uma peça, é inevitável que seja disparada no terceiro. E, no decorrer da história, se reis e imperadores adquiriam alguma arma nova, mais cedo ou mais tarde, seriam tentados a usá-la. Desde 1945, entretanto, a humanidade aprendeu a resistir à tentação. A arma que apareceu no primeiro ato da Guerra Fria nunca mais foi disparada. Estamos acostumados a viver em um mundo de bombas que não foram lançadas e de mísseis que não foram disparados e nos tornamos especialistas em quebrar tanto a Lei da Selva como a de Tchékhov. Se essas leis alguma vez funcionarem conosco, a culpa terá sido toda nossa — e não de nosso inexorável destino.

O que dizer então do terrorismo? Mesmo que governos centrais e Estados poderosos tenham aprendido o que é contenção, os terroristas podem não ter escrúpulos quanto a usar armas novas e destruidoras. Essa é uma possibilidade certamente preocupante. No entanto, o terrorismo é uma estratégia de fraqueza adotada por aqueles que carecem de acesso ao poder de fato. Ao menos no passado, seu funcionamento era resultado mais da disseminação do medo do que de danos materiais significativos. Terroristas normalmente não têm o poder de derrotar qualquer exército, de ocupar um país ou de destruir cidades inteiras. Em 2010, enquanto a obesidade e doenças relacionadas a esse mal mataram cerca de 3 milhões de pessoas, terroristas mataram 7697 indivíduos em todo o mundo, a maioria deles em países em desenvolvimento. Para um estadunidense ou europeu mediano, a Coca-Cola representa um perigo muito mais letal do que a Al-Qaeda.

Como, então, terroristas conseguem dominar as manchetes e mudar a situação política em todo o mundo? Provocando nos inimigos uma reação desmedida. Na essência, o terrorismo é um show. Os terroristas encenam um tenebroso espetáculo de violência que captura nossa imaginação e nos transmite a sensação de estar escorregando de volta ao caos medieval. Em consequência, os Estados frequentemente se sentem obrigados a reagir ao teatro do terrorismo com um show de segurança, orquestrando imensas exibições de força, como a perseguição a populações inteiras ou a invasão de países estrangeiros. Na maioria dos casos, essa reação exacerbada representa um perigo muito maior a nossa segurança do que aquele decorrente de atentados terroristas.

Terroristas são como uma mosca tentando destruir uma loja de porcelanas. A mosca é tão fraca que não é capaz de deslocar uma única xícara de chá. Então ela encontra um touro, entra em sua orelha e começa a zunir. O touro fica louco de medo e de raiva — e destrói a loja de porcelanas. Foi isso que aconteceu no Oriente Médio na última década. Os fundamentalistas islâmicos jamais conseguiriam, sozinhos, derrubar Saddam Hussein. Em vez disso, enfureceram os Estados Unidos com o ataque de Onze de Setembro, e os Estados Unidos destruíram a loja de porcelanas médio-oriental para eles. Agora os fundamentalistas florescem nas ruínas. Sozinhos, os terroristas são fracos demais para nos arrastar de volta à Idade Média e restabelecer a Lei da Selva. Podem nos provocar, mas, no fim, tudo depende das reações que apresentamos. Se a Lei da Selva entrar em vigor novamente, não será por culpa de terroristas.
Yuval Noah Harari, "Homo Deus: Uma breve história do amanhã"

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